Título: Bolívia vota Constituição que apóia indígenas e assusta investidores
Autor: Moura , Marcos
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2009, Especial, p. A16

Os bolivianos decidem neste domingo, em um referendo, se aceitam substituir a Constituição vigente desde 1964 por uma nova Carta proposta pelo governo do presidente Evo Morales. Se o texto for aprovado, os indígenas e camponeses bolivianos, que formam a maioria da população, ganham - ao menos no papel - uma série de direitos e um inédito reconhecimento oficial a valores pré-coloniais que resistirem ao tempo no interior do país.

Mas, para os críticos, o texto é também um compêndio de idéias que fatalmente vão afugentar ainda mais os investimentos privados, vitais para que o país mais pobre da América do Sul saia de seu histórico atoleiro.

Sob a nova Constituição, o governo central e os governos regionais serão, por exemplo, obrigados a usar em seus documentos e na divulgação de informação pública o espanhol e a língua indígena predominante na região. Além do espanhol, outros 36 idiomas são declarados oficiais. A cédula de identidade, o passaporte e outros documentos conterão, além da cidadania boliviana, "a identidade cultural" - indígena ou camponesa - de quem o desejar. Tribunais populares existentes desde antes da chegada dos espanhóis passarão a ter validade jurídica reconhecida (leia texto abaixo).

Outra mudança prevista: caso uma comunidade indígena ou camponesa não simpatize com algum projeto de empresa nacional ou multinacional em suas terras, ela terá nas mãos o poder para barrar o empreendimento.

Segundo pesquisas, 55% dos eleitores devem votar "sim" ao texto. "É um projeto de tom social que prevê, por exemplo, a universalização do atendimento à saúde e constitucionaliza diversos direitos a mulheres, indígenas e crianças", diz o economista Gonzalo Chávez, professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica da Bolívia. Para ele, a parte social do texto se assemelha a outras Constituições da América Latina, inclusive a brasileira.

Segundo estimativa do centro de estudos Fundación Milenio, somente a universalização dos serviços de saúde implicarão gasto extra de ao menos US$ 600 milhões ao ano, cerca de de 5% do PIB.

Mas além da ênfase social, Chávez ressalta, como traço notável do projeto, o papel central do Estado no planejamento da economia, além de pontos que, na prática, deverão inviabilizar o investimento de capital no país. "O projeto blinda a Bolívia contra investimentos privados", diz ele.

Um dos pontos que, para o economista, devem assombrar o investidor estrangeiro no setor de hidrocarbonetos é o artigo 366. Lá está dito: "Não se reconhecerá, em nenhum caso, tribunal nem jurisdição estrangeira e [as empresas] não poderão invocar em situação excepcional uma arbitragem internacional, nem recorrer a reclamações diplomáticas". Em outras palavras, diz Chávez, se o governo da Bolívia mudar as regras do jogo sobre a exploração de gás, empresas como a Petrobras não poderão recorrer a nenhum fórum internacional caso se sintam prejudicas.

Outro artigo intrigante é o 351, que trata da exploração de recursos naturais no país. O texto estabelece que o "Estado assumirá o controle e a direção da exploração, industrialização, transporte e comercialização dos recursos naturais estratégicos". Empresas poderão ser contratadas, mas apenas em associação com uma estatal. E mais: não poderão remeter seus ganhos para os países de origem. "Os ganhos terão de ser totalmente reinvestidos na Bolívia, o que contraria totalmente o espírito das transnacionais que precisam repartir os lucros com os acionistas", critica o economista.

A Bolívia carece de investimentos privados em gás para ampliar sua produção - atualmente em 42 milhões de metros cúbicos por dia - e conseguir assim atender aos contratos de fornecimento que tem com o Brasil e a Argentina. No ano passado, o governo Morales chegou a tentar convencer o Brasil a reduzir sua cota de gás para que a Bolívia pudesse aumentar temporariamente o fornecimento para a Argentina. A indústria de gás, ao lado da mineração, é a principal fonte de receita da Bolívia.

Em Santa Cruz de la Sierra, a cidade mais rica do país, volta e meia moradores e motoristas amargam escassez de gás de cozinha e para automóveis, sinal inequívoco da falta de mais investimentos para incrementar a produção doméstica do combustível, diz o secretário de Autonomia, Descentralização e Desenvolvimento do Departamento de Santa Cruz, Carlos Dabdul Arrien.

O economista Gonzalo Chávez ilustra a carência de investimentos da Bolívia com os seguintes números. "Para começar a reduzir a pobreza, a Bolívia precisaria crescer entre 7% a 8% por ano e isso exigiria investimentos anuais entre US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões. O Estado teria condições de no máximo garantir a metade disso. Investimentos privados são fundamentais".

Entre 1990 e 2000, a Bolívia cresceu quase 4% ao ano. E de 2000 para cá, ao redor de 3,4%.

Mas que investidor, pergunta Arrien, se sentirá encorajado a apostar num país cuja Constituição classifica como crime de "traição à pátria" a violação do regime constitucional de recursos naturais - os hidrocarbonetos, a água, o ar, o solo, o subsolo, as matas, a biodiversidade, o espectro eletromagnético e "todos os elementos e forças físicas suscetíveis de aproveitamento". "Imagine qual será o risco de um sojeiro brasileiro que precisa fumigar com inseticida a sua plantação", diz Arrien. A pena máxima para os traidores da pátria: 30 anos de prisão sem direito a indulto.

No texto que "refunda a Bolívia" - como anuncia o preâmbulo da Carta - a questão da autonomia e da autodeterminação indígena e camponesa rendeu discussões e confrontos apaixonados e páginas e páginas de debate na imprensa local nos últimos meses. Para governo de Santa Cruz - centro da oposição a Morales - essa será a questão mais delicada de administrar caso o projeto seja aprovado na consulta popular de domingo.

"O texto cria uma situação de ingovernabilidade quando fala da autodeterminação indígena e camponesa ", diz Arrien. Isso, diz ele, porque garante a essas comunidades o direito a estabelecer regras políticas e econômicas - incluindo o de arrecadar impostos. Direito que não estará subordinado a um governo departamental e municipal, afirma. O texto diz que às comunidades indígenas e originárias caberá "criar e administrar taxas, patentes e contribuições especiais", assim como "administrar impostos de sua competência".

Santa Cruz liderou no país uma campanha em prol de mais autonomia de gestão aos Departamentos. Em 2006, 71,3% dos cruzeños votaram por mais autonomia - e não independência, como sempre repetem - e em maio do ano passado 85,6% aprovaram o estatuto autonômico, contrariando o governo Morales. Após longas batalhas, o projeto de Constituição de Morales incluiu pontos que dão mais autonomia aos Departamentos. "Mas com essa diversidade de autonomias indígenas do projeto, será melhor continuarmos como estamos hoje", diz Arrien.

Com relação à propriedade, o projeto de Morales diz que "toda pessoa tem direito à propriedade privada individual ou coletiva, sempre que está cumpra uma função social". E que será garantida sempre que o uso dessa propriedade não seja "prejudicial ao interesse coletivo".

A Constituição em vigor já fala em "função social" e "interesse coletivo". Já fala também de planejamento estatal da economia - como reforça o projeto - e dos direitos indígenas. A Constituição foi emendada em 1994.

Mas o texto de Morales reforça esses e outros pontos e adiciona aspectos sob uma perspectiva de mais centralismo e de indigenismo. "Eu já disse em muitas oportunidades: somos diferentes não apenas fisionomicamente, somos diferentes também economicamente, diferentes geograficamente no altiplano, no vale, no oriente boliviano e na Amazônia", disse Morales na quarta. Segundo ele, ao contemplar a diversidade do país em seus vários aspectos, o texto será a maior conquista social do país em sua história republicana.

Ontem, Morales voltou ao tema, dizendo a "aprovação e implementação da nova Constituição Política do Estado boliviano fechará o ciclo de crise estatal dando origem a um Estado autônomo".

"Eu estava ouvindo algumas informações que vêm da Europa e me dizem que esta nova Constituição boliviana, ainda em projeto, que no domingo será submetida ao povo, é uma das mais avançadas em conquistas sociais, nos direitos sociais e dos trabalhadores", disse.

Os críticos, é claro, oferecem uma leitura menos auspiciosa. "É um acerto de contas com dois elementos", resume Gonzalo Chávez. "O neocolonialismo e o neoliberalismo, que, é verdade trouxeram problemas para principalmente às populações mais pobres na Bolívia. A Constituição reflete uma visão pendular na América Latina. Há dez anos, todos os governos adoravam o livre mercado, agora pregam o estatismo, quando o mais sensatos seria uma mescla dessas duas visões", diz Chávez.