Título: A America na identidade do Haiti
Autor: freitas, guilherme
Fonte: O Globo, 07/07/2012, Rio, p. 26

O GLOBO: "Como fazer amor com um negro sem se cansar" trata de questões como identidade e imigração, de uma forma muito próxima ao cotidiano, principalmente por meio das relações do protagonista, um imigrante haitiano, com as mulheres canadenses. Como a comunidade haitiana no Canadá reagiu ao livro?

DANY LAFERRIÈRE: A reação mais comum foi que muita gente não gostou do livro porque ele tinha muito sexo. A maior parte da diáspora haitiana no Canadá era formada por intelectuais engajados que, além de não gostarem das cenas mais picantes (risos) , consideraram inadmissível que um jovem recém-chegado gastasse um romance inteiro sem falar do Haiti. Entre os imigrantes de classe operária, alguns se chocaram, mas outros se identificaram com os relatos do cotidiano. E os canadenses politizados também não gostaram, principalmente as feministas, que criticaram a forma como o livro retratava as mulheres. Enfim, quase ninguém gostou no primeiro momento. Com o passar dos anos, quando começaram os debates mais sérios sobre identidade, imigração e a política da sexualidade, surgiram outras leituras que viam no romance algo mais que o sexo pelo sexo.

Qual a importância de "Como fazer amor com um negro sem se cansar", considerando que ele acabou se tornando o primeiro de uma série com dez romances batizada de"Autobiografia americana"?

LAFERRIÈRE: Esse foi o primeiro romance que escrevi e foi muito importante, pois permitiu que eu situasse minha obra em um espaço americano mais amplo. Eu acreditava que era preciso incluir o Haiti na América, para além do Caribe, que é uma construção colonial. Não existe mais um eixo Haiti-França, temos uma identidade comum com a América, fundada numa história colonial, mas que no presente vai além disso. Ainda tinha dificuldades para articular essas questões quando escrevi o livro, mas hoje vejo claramente que falava sobre o Haiti, embora não diretamente.

Na posição de um haitiano requisitado com frequência para falar sobre o país, como você avalia a imagem que se tem do Haiti no continente, e no mundo, em geral?

LAFERRIÈRE: O mais impressionante para mim é que, em todo o mundo, o Haiti ocupa um lugar no espírito das pessoas. Acredito que isso se deve, em grande parte, ao evento singular que foi a independência do Haiti, quando pela primeira vez na História escravos se revoltaram e formaram um país livre. Uma atitude desse porte acabou gerando reações contrárias e o país se viu isolado, numa situação política difícil, o que culminou com um ciclo de ditaduras. Então surgiu uma outra imagem do Haiti, a de um país extremamente pobre governado por tiranos. Então veio o terremoto de 2010, e acredito que ali, de certa forma, o Haiti recuperou seu lugar na memória humana como um país capaz de tocar os corações.

Você estava em Porto Príncipe no momento do terremoto e voltou algumas vezes desde então. Como estão as coisas agora?

LAFERRIÈRE: Escrevi um livro sobre o terremoto, "Tout bouge autour de moi" ("Tudo se move ao meu redor", inédito no Brasil). Comecei a escrever 15 minutos depois dos tremores e tentei mostrar a força dos haitianos. A última vez que estive lá foi há poucos meses, e vi um país com energia, os jovens se dedicando à reconstrução. O Haiti hoje procura restabelecer a vida cotidiana, mas numa situação ainda próxima da catástrofe. A ajuda internacional e mesmo a do Estado não vieram como se imaginava, então as pessoas estão se ajudando umas às outras, fazendo obras, dividindo comida. O que salvou o Haiti do desastre foi esse movimento de colaboração entre um povo que nunca dependeu de ninguém e que, no momento da catástrofe, reafirmou sua independência. Os haitianos continuaram a viver.

No romance "País sem chapéu", publicado no Brasil, você fala do Haiti intercalando capítulos intitulados "país real" e "país sonhado". Como esse contraste pode ajudar a pensar no Haiti?

LAFERRIÈRE: Creio que esse contraste é verdadeiro para todo país, não só para o Haiti. Todo país precisa de uma grande porção de sonho, senão definha. Se olhamos só para os números do Haiti - PIB, expectativa de vida, renda per capita, fome etc. -, ficamos facilmente desesperados. Mas os haitianos não se contentam só em sonhar. O imaginário é um assunto muito concreto, seja na música, na pintura, na literatura, no cinema, ou na vida cotidiana. É com esse ingrediente de sonho que se podem criar melhores condições de vida no presente.