Título: Waldilene, em Cidade de Deus, vira Emília para ensinar a ler
Autor: Otavio, Chico; Rodrigues, Karine
Fonte: O Globo, 15/08/2011, O País, p. 4

Professora usa o lúdico para motivar alunos, que vivem em área pobre

WALDILENE: contra a desatenção é preciso usar elementos que façam parte da vida dos alunos, como o funk, que ela cantou para ensinar os fonemas

A segunda visita da boneca Emília à turma 1102 do Ciep Luiz Carlos Prestes, na Cidade de Deus, já não causou tanto espanto. Mas a felicidade da criançada, alunos pobres na faixa dos 6 anos, foi a mesma da estreia. Alguns, emocionados, arriscaram um palpite:

¿ É a tia Waldilene.

A boneca negou. E com razão. Depois de se vestir com a fantasia que ela mesmo fez, de se maquiar e de ajeitar a peruca, a professora Waldilene Regina Nascimento e Sousa, de 35 anos, se transfigura no personagem de Monteiro Lobato. Sua voz, seus trejeitos e sua desenvoltura fariam inveja à lendária atriz Dirce Migliaccio.

Apesar do talento cênico, que vence a timidez, a pretensão da Emília do ¿Brizolão do Pantanal¿, nome popular daquele Ciep, é outra: ensinar de forma lúdica. E a boneca não perde tempo. Depois de cantar a música da Emília, cita o conto ¿No reino das águas claras¿ para explicar aos seus 30 alunos de primeiro ano como é importante não jogar lixo nos rios, mantendo-os limpos e afastando o risco de enchentes.

Eram 11h e Waldilene teria ainda mais cinco horas e meia de atividades até completar mais uma jornada diária. Quase tudo ali conspira contra o bom humor da professora. O Ciep está em uma das áreas mais pobres da Cidade de Deus, onde parte dos barracos foi demolida devido ao risco de desmoronamento. Parte da turma vem de famílias desestruturadas. Algumas têm pais viciados em cocaína e crack, envolvidos com o tráfico de drogas.

Cercada de prateleiras coloridas por objetos diversos, cartazes e avisos criativos, como um que imita uma placa de trânsito para proibir a presença de piolhos, a sala de Waldilene só não é uma ilha da fantasia para a criançada porque ali a educação é real. Num país em que manter a atenção dos alunos da rede pública ainda é um desafio, ela dá lições de criatividade para manter os alunos de olhos vidrados.

Naquele dia, antes de virar Emília, ela contava aos alunos a história de Iara, a sereia, numa atividade sobre figuras folclóricas. Dandara Cristina dos Santos, de 6 anos, de tão ligada na narrativa, ficou de pé para ver melhor o desenho dos homens enfeitiçados pela sereia.

¿ Que bobões, né? ¿ brincou a professora.

Se a agitação aumenta, Waldilene endurece, mas sem perder a ternura:

¿ Bumbunzinho no chão. Fecha a matraquinha. Se continuar, vou por o chapéu da bruxa ¿ ameaça.

Com um ano e meio de magistério, aprovada pelo concurso de 2008, Waldilene trocou o emprego num projeto de educação à distância pela rede pública, em busca de estabilidade. Esperava ter dificuldades com a criançada, mas, agora, com o estímulo da direção do colégio, tomou gosto pela sala de aula.

Ela diz que a principal estratégia para vencer a desatenção é usar os próprios elementos presentes na vida dos alunos, principalmente as músicas, para ensinar.

¿ Outro dia, eles chegaram aqui cantando um funk dos Havaianos, banda daqui. Aprendi a música para cantar com eles, ensinando os fonemas. Deu certo.

Já a boneca Emília nasceu numa sala de leitura. Uma das alunas chegou a chorar de emoção. Paraense, agora está ensinando a turma a dançar o carimbó. Ela mesma comprou os tecidos e costurou as saias das alunas.

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