Título: Confronto entre irmãos nos Andes
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 03/07/2011, O Mundo, p. 43

Beneficiado com contratos suspeitos no Equador, Fabricio ataca Rafael Correa ao sentir-se alvo de conspiração

QUITO. Acontece aos sábados. Depois de falar por quase duas horas em cadeia de rádio e televisão, o presidente do Equador anuncia:

- Agora, vamos ao segmento que todos esperam.

Ouvem-se acordes eletrônicos. E, num crescendo, surgem vozes de um casal. Em jogral:

- A verdade! - clama o locutor.

- Somente a verdade! - ela brame.

- Por um verdadeiro Estado de Direito e não de opinião! - arremata o locutor.

Volta, então, a peculiar voz gutural do presidente Rafael Correa Delgado. Por mais 30 minutos, ele dá vazão a uma retórica acrimoniosa tonificada por energéticos (Red Bull) e café - dois de seus vícios. O tom colérico cadencia o lançamento de vitupérios, em exibição permanente na página da Presidência do Equador na internet (www.presidência.gob.ec).

O pesquisador Maurício Rodas Espinel, da Fundação Ethos (México), analisou dois meses de discursos e listou em ordem alfabética 170 xingamentos: de"cachorro" e "corno" até "sem-vergonha" e "vendilhão da pátria".

Ataques a granel aos adversários

Aos 48 anos, Rafael Correa faz questão de se afirmar diariamente como um inimigo fiel dos seus críticos. Na vulgata presidencial há lugar para todos. Empresários? "Ladrões". Adversários? "Mafiosos corruptos". Professores? "Coveiros da educação". Jornais? "Covardes". Rádios e televisões privadas? "Esgotos com antenas". Jornalistas? "Canalhas". Líderes de movimentos sociais? "Terroristas".

Enquanto o governo processa 189 líderes indígenas por "terrorismo", o presidente pede à Justiça US$400 milhões em indenizações "por dano moral" contra a imprensa, jornalistas e cidadãos com ideias das quais não gosta. "Não tenho medo de ficar (na História) como um presidente que censura", disse na semana passada.

Correa até agora só se preocupou em poupar uma pessoa: seu irmão mais velho, Fabricio, de 51 anos, engenheiro, rico homem de negócios e dono de uma carteira de contratos governamentais estimada em US$250 milhões - quantia equivalente a 10% da arrecadação anual do Imposto de Renda equatoriano.

Por uma trapaça da vida, o primogênito dos Correa Delgado se tornou um personagem temido pelo irmão-presidente. Ele foi o caixa da campanha presidencial de 2006, quando Correa se elegeu para o primeiro mandato. Agora, é a pessoa que mais denuncia corrupção no governo do Equador, especialmente no gabinete presidencial.

Eles brigaram há dois anos, depois que Fabricio confirmou, durante seis horas de entrevista aos jornalistas Juan Carlos Calderón e Christian Zurita Ron, do "Expreso" (Guayaquil), que realmente mantém um latifúndio de contratos de obras e serviços com o governo do naño (diminutivo de irmão) - como se refere ao presidente. A reportagem virou livro ("El Gran Hermano") recordista em vendas.

Apenas no setor de energia, os contratos de Fabricio com o governo do irmão ultrapassam US$80 milhões. Os negócios são controlados por empresas do Panamá - paraíso fiscal- subcontratadas por estrangeiras, algumas brasileiros (OAS e Odebrecht, até 2009). Fabricio preside a Câmara de Comércio Equador-Brasil.

O governo Correa chegou a anunciar a rescisão desses contratos, por motivos éticos. Sentindo-se alvo de conspiração contra seus interesses ("juridicamente perfeitos"), o irmão do presidente partiu para o ataque. Desde então, frequenta o Congresso e tribunais abraçando caixas de papéis com um rótulo: "Provas de Corrupção".

Fabricio leva mãe a audiências

O presidente raramente fala do irmão. Apenas confirmou a "ruptura" familiar, ressalvando que nunca concordou "com sua forma de fazer negócios". Mas não o processou. E o governo manteve os contratos, como se nada tivesse acontecido.

Fabricio, ao contrário, cada dia fala mais:

- Ele (Rafael) não aceita quem pensa diferente. E gasta muito dinheiro público para fazer campanha contra quem pensa diferente. Vivemos num país em clima de absoluta insegurança. Eu falo para me defender de um governo que se baseia em terror, que faz de tudo para atemorizar as pessoas. Não tenho medo dele e nem dos que estão com ele.

Um irmão no poder é um irmão perdido, acredita Fabricio, para quem o naño Rafael padece de uma patologia do poder - a dos políticos que ascendem pela megalomania e declinam em paranoia.

- É a síndrome de hybris - repete, com ironia, referindo-se à forma como na antiga Grécia se descrevia um guerreiro embriagado com o sucesso que passava a se achar deus, capaz de qualquer coisa.

Ressentimento à parte, Fabricio conhece o irmão tanto quanto a mãe, Norma Delgado, de 72 anos, que às vezes o acompanha às audiências de denúncias contra o governo Correa. Durante a vida em "pobreza evangélica", como define, o primogênito atuou como uma espécie de tutor do irmão-presidente e da irmã, Pierina. Ocupou o espaço do pai, Rafael, cuja vida atribulada acabou em 1995: suicidou-se aos 61 anos, depois de cumprir pena na Louisiana (EUA) por ter sido flagrado ao desembarcar com dois quilos de cocaína em Nova York.

O presidente Correa fez do confronto uma tática política, dosada pelo pragmatismo com a maioria pobre do eleitorado, para a qual desenhou programas de subsistência - sua especialidade como economista, estimulada pelos padres salesianos que no início da carreira deram-lhe um estágio no cenário de miséria em que sobrevivem os índios de Zumbahua, no noroeste do Equador. "Ele é um nacionalista e um esquerdista, mas não é abertamente antiamericano", diz um perfil elaborado pela Embaixada dos EUA em Quito. Não gosta de comparações com o caudilho venezuelano Hugo Chávez, acrescenta o documento, "porque entende ser capaz de traçar a sua própria rota".

No entanto, o Equador de Correa está cada dia mais dependente da Venezuela e da China. Ele toma empréstimos em dólar do governo Chávez a um custo (média de 11,5%) bem acima das taxas internacionais. E vende petróleo à China, em contratos de longo prazo, por uma fração (cerca de 10%) da cotação atual (US$95 o barril).

Uma década depois da hiperinflação, que o levou a renunciar à sua moeda, o sucre, e a adotar o dólar americano, o Equador patina em grave crise. A economia cresce (3%) abaixo da média sul-americana, a inflação sobe (6%), o desemprego e o subemprego avançam (57% da população), o gasto público mais que duplicou e a extração de petróleo, principal produto de exportação, declina.

Capital externo foge do Equador

Os países vizinhos recebem inédito volume de capital externo, enquanto os investidores estrangeiros fogem do Equador: o país perdeu 83% do fluxo de investimentos - de US$1 bilhão em 2008 caiu para US$164 milhões em 2010. É bem menos do que recebeu o Paraguai (US$268 milhões), cuja economia é metade da equatoriana.

Em boa medida, isso é o resultado da política de confronto de Correa. Quando assumiu, em 2007, ele decretou um calote na dívida externa. Depois, rescindiu contratos de empresas estrangeiras de petróleo, inclusive a Petrobras. Mais tarde, expulsou a empreiteira Odebrecht, que construía uma hidrelétrica, e anunciou um calote de US$432 milhões no BNDES - em janeiro o banco estatal brasileiro venceu a disputa numa corte de arbitragem. Somados, os processos movidos por empresas estrangeiras superam US$5 bilhões, o equivalente a 25% do PIB equatoriano.

Apesar desse clima de incertezas, num país traumatizado por uma longa história de golpes de Estado, Correa não esconde o desejo de um terceiro mandato em 2015. A oposição já perfila candidatos. Entre eles está Fabricio, o irmão mais velho, ex-tutor, ex-caixa de campanha e, agora, principal opositor do presidente.