Título: Com propostas ambíguas, Dilma permanece um enigma
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 10/10/2010, O País, p. 18

Seu desafio é construir identidade e dissipar dúvidas sobre duplo comando na Presidência

Dilma Rousseff chega ao segundo turno da disputa presidencial como um enigma, mas diáfana na dependência do seu mais prestigiado cabo eleitoral, o presidente Lula, por quem demonstra uma admiração próxima do fervor religioso: mdash; É o grande mestre que nos ensinou o caminho ¿ é como se refere ao seu patrono na política, desde que virou candidata do PT.

Suceder a Lula não é fácil. Seu êxito na imposição da candidatura de Dilma é eloquente sobre o poder de influência. Fez uma opção pelo nome aparentemente mais improvável ¿ até mesmo pelo absoluto anonimato. Há dois anos, Dilma figurava com apenas 2% da preferência. Saiu das urnas domingo passado como favorita, com 47% dos votos válidos.

Até agora, a sombra do criador contribuiu mais para deixar opaca a nuvem nas quais as ideias da criatura estão envoltas. Dilma, por exemplo, já havia superado os adversários na produção de programas de governo, mas com resultado nulo. Numa sexta-feira de agosto, ela assinou (¿apenas rubriquei¿) e registrou na Justiça Eleitoral dois programas de governo contraditórios nos fundamentos.

É possível que, durante as próximas três semanas, Dilma deixe mais translúcidas suas ideias e propostas.

Não faltará tempo para esclarecer posições sobre as quais ainda pairam entendimentos com mais de um sentido, sobretudo em relação aos rumos da economia. Terá chances em quatro debates, além dos dez minutos de propaganda diária.

Seus discursos dos últimos nove meses sugerem que um eventual governo Dilma seria baseado em uma premissa econômica e lançaria pelo menos duas reformas ¿estruturantes¿, como gosta de dizer.

¿ A premissa é preservar a estabilidade macroeconômica.

Vamos manter o equilíbrio fiscal, o controle da inflação e a política de câmbio flutuante.

Sobre a estabilidade e a taxa cambial, arrisca a aposta de que um nada tem a ver com outro: ¿ Eu considero que o ajuste fiscal não tem uma relação direta com o câmbio. A questão do câmbio diz respeito, no caso dos Estados Unidos e dos países desenvolvidos, ao fato de eles ainda estarem numa crise profunda. Essa crise não vai ser resolvida por ajuste fiscal. O que nós vamos ter de fazer é aumentar a competitividade da indústria brasileira, tanto através de uma reforma tributária quanto através de uma melhoria do endividamento público.

Acrescentou: ¿ Quando chegamos ao governo, a dívida pública era de 60% (do PIB). Chegou a 40%. Isso vai permitir que a gente reduza os juros, e a relação com o câmbio vai melhorar. Mas é necessário esse processo de redução (da dívida pública interna).

Metas grandes e genéricas

Nunca esclareceu como vai fazer para ¿ sem diminuir o ritmo crescente das despesas governamentais ¿ avançar na redução da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto.

E, assim, forçar uma queda nos juros recordes, hoje inflacionados pelo governo, que, com eles, premia quem no mercado financeiro financia seus gastos.

Se eleita, Dilma anunciou, a primeira das reformas será no sistema político-partidário: ¿ Vamos unir o melhor das nossas energias para fazer a reforma política. Quero dizer com todas as letras aos partidos políticos e ao país: não dá mais para adiar esta reforma. Ela é uma necessidade vital para corrigir equívocos, vícios e distorções.

Aparentemente, seria uma reforma ampla, geral e irrestrita, que poderia levar até à mudança no sistema de representação no Congresso. Mas neste, como em outros temas, a candidata sempre se conteve no limite da ambiguidade.

A outra reforma, propõe, será no sistema tributário. Mas, outra vez, sobram generalidades: ¿ A nossa estrutura tributária é caótica. Entre outras coisas, vamos investir para informatizar (sic) todos os tributos.

Vamos ampliar a base de arrecadação e diminuir as alíquotas dos impostos. Outra grande meta do governo Lula, que nós vamos completar e que foi realizada, mas iremos aprofundá-la, é a desoneração do investimento.

Dilma se diz coerente com ideias e princípios que defendia nos anos 70. Se alguém mudou, portanto, foram os adversários.

¿ Não sucumbimos aos modismos ideológicos. Persistimos em nossas convicções, buscando, a partir delas, construir alternativas concretas e realistas.

Durante a campanha, elegeu alguns ícones para traçar essa linha divisória em relação aos competidores. Uma delas foi a ¿reorganização do Estado¿.

¿ Alguns ideólogos chegavam a dizer que quase tudo seria resolvido pelo mercado. O resultado foi desastroso. Aqui, o desastre só não foi maior, como em outros países, porque os brasileiros resistiram ao desmonte e conseguiram impedir a privatização da Petrobras, do Banco do Brasil, da Caixa ou de Furnas.

Depois de oito anos no governo, Dilma acha que o Estado brasileiro precisa ser ¿reconstituído¿.

Repetiu essa ideia como um mantra, em termos vagos, como em toda evocação de uma filosofia mística: ¿ Vamos recompor a capacidade do Estado de planejar, gerir e induzir o desenvolvimento do país. Reforçar também a capacidade de planejar do Estado brasileiro, a integração entre o estado e o setor produtivo, setor privado, entre o governo e a sociedade. Entre o governo federal, entre o governo dos estados e dos municípios.

Preocupada em se distinguir, acentuou a retórica estatizante e adotou símbolos como a Petrobras ¿ principal canal de investimentos do setor público.

Para ela, a recente venda de ações da empresa demonstraria toda a ¿diferença¿ para o PSDB, pois o governo Lula conseguiu atrair investimento privado e ainda aumentou sua participação acionária na estatal, mesmo sem aportar um só centavo em dinheiro novo.

¿ Fizemos tudo isso e ainda ampliamos a participação da União na Petrobras. Em 2000, teve redução drástica da participação da União na Petrobras.

Conseguimos uma capitalização de US$ 70 bilhões e valorização da participação da União para 48%. Eu acho que mostra claramente a diferença entre esse governo e o anterior, do Fernando Henrique Cardoso. Vendemos algum pedacinho da Petrobras? Não. Pelo contrário, aquilo que eles venderam da Petrobras nós compramos de volta.

Pela forma como tratou o tema, leva à conclusão de que seu governo se esforçaria para ampliar ao máximo o peso do Estado na economia.

Isso seria coerente com as propostas defendidas por uma ala do PT e pelo PCdoB. Mas carece de sintonia com o clima de liberalismo e pró-negócios predominante no PMDB (um dos esteios parlamentares do programa de privatizações na era FH). Este partido deu a Dilma o vice-presidente, o liberal Michel Temer, e deverá ser decisivo para um futuro governo aprovar qualquer coisa no Congresso.

Os outros nove partidos que compõem a base política de Dilma e do governo Lula costumam ser assíduos no Congresso na defesa de princípios liberais.

Por isso, há quem relativize as ambiguidades da candidata sobre o papel do Estado, atribuindoas a um vício retórico de antiga militante de leituras do marxismoleninismo.

É possível. Isso porque, até agora, o que Dilma mais deixou transparecer foram esboços de ideias na direção de um programa econômico para fortalecer as empresas brasileiras ¿no qual, ao Estado, estaria reservado um papel crescente como fiador do capitalismo.

¿ Acreditamos no Estado indutor.

O que é isso? É aquele Estado que, no meio da crise, fornece o crédito ¿ definiu em entrevistas.

¿ Acreditamos na força da iniciativa privada no Brasil. Só não achamos que o Estado, por isso, não tem de estar presente, dando as condições para o investimento. Hoje, nós temos crédito de longo prazo graças ao BNDES.

Alguns setores empresariais seriam privilegiados.

¿ Nós vamos adotar um princípio que o presidente Lula adotou ¿ anunciou. ¿ Quando o Brasil voltou a produzir plataformas (marítimas) aqui, deixamos de exportar empregos para Cingapura e Coreia. O principio é muito claro: ¿Tudo que pode ser produzido no Brasil deve ser produzido no Brasil¿. Porque nós somos capazes, com o mesmo preço, qualidade e prazo. É, como fez o presidente Lula, para empregar aqui e gerar renda aqui.

Sempre grata ao ¿grande mestre¿, Dilma já chegou a citar Lula por 29 vezes em um único discurso. Seu maior desafio agora é construir uma identidade à margem do patrono político. Não apenas para esclarecer o rumo ¿ e as diferenças ¿ de seu eventual governo, mas, sobretudo, para dissipar dúvidas sobre a possibilidade de um duplo comando na Presidência da República.