Título: O clique que mudou a vida de mil crianças
Autor: Candida, Simone
Fonte: O Globo, 15/08/2010, Rio, p. 32

Cadastro unificado online criado no MP há 2 anos ajuda a retirar de abrigos menores que acabariam esquecidos

LIANE PEREIRA, administradora do Abrigo Doutor Fernandino Del Negro, em Nilópolis: ¿Crianças não têm que passar a vida assim¿

GABRIELA, MARIA AMÉLIA e Rosa (sentada): projeto inovador

Imagine um banco de dados online, onde um perfil detalhado de todas as crianças abrigadas em instituições do estado está disponível e pode ser acessado e atualizado em tempo real por diretores de abrigos, juízes, promotores e conselheiros tutelares. A ideia, que nestes tempos de internet, redes sociais e smartphones parece óbvia, nasceu lá pelos idos da década de 90, quando uma procuradora de Justiça, sensibilizada com a situação de centenas de menores esquecidos em instituições do Rio, pensou em criar um cadastro unificado, uma espécie de radiografia desses meninos e meninas. Entre idas e vindas, o projeto saiu do papel e foi para a tela dos computadores em 2008, quando a procuradora Rosa Carneiro, junto com outras duas colegas, as promotoras Maria Amélia Barreto Peixoto e Liana Cardozo, lançou o Módulo Criança e Adolescente (MCA).

Nos últimos dois anos, o projeto do Ministério Público ajudou a retirar de abrigos do estado cerca de mil crianças e adolescentes, que voltaram a viver com suas famílias ou foram adotados. A ação, que agilizou o trabalho de juízes, promotores e de todos os agentes públicos que atuam na área de infância e juventude, recebeu o V Prêmio Inovare (2008), que reconhece ações inovadoras na Justiça.

Acesso rápido aos dados sobre 2.784 menores

Na prática, o MCA possibilitou um acesso rápido às informações sobre qualquer uma das 2.784 que hoje vivem nas 241 entidades do estado. Dados que antes ficavam espalhados e muitas vezes perdidos em arquivos de papel, como o número real de crianças que vivem nos abrigos e o motivo e o tempo do acolhimento. Tudo ao alcance de um clique.

¿ O Rio de Janeiro, como outros estados, sempre conviveu com o grave problema de muitas crianças institucionalizadas esquecidas. Conheci casos de bebês que viraram adultos nos abrigos. O projeto tem o objetivo de mudar isso por meio da democratização das informações ¿ explica Rosa Carneiro, de 48 anos.

O sistema permite o cruzamento de dados e emite alguns alertas para promotores e juízes, avisando, por exemplo, quando foi a última audiência da criança. Dependendo do perfil da senha do usuário (juízes e promotores têm acesso irrestrito), é possível saber idade, tempo de acolhimento, número de processo, relatórios e até ver fotos do menor. Alguns desses dados são, inclusive, divulgados para a população no Censo da População Infanto-Juvenil Abrigada no Estado do Rio, no site do MP (www.mp.rj.gov.br/portal/page/portal/MCA). O próximo censo será divulgado em setembro.

Liane Pereira, de 52 anos, que há seis administra o Abrigo Doutor Fernandino Del Negro, em Nilópolis, conta que leva a sério a tarefa de atualizar o cadastro online, pois acredita que ele vai ajudar a acabar com as tristes histórias de crianças que são esquecidas nas instituições até atingir a maioridade:

¿ Atualizo assim que a criança chega porque sei que as informações vão ajudar juízes e conselheiros. Crianças não têm que passar a vida dentro de um abrigo. Quem convive com elas sabe que, por mais que a gente cuide e dê carinho, nada substitui o amor de uma família ¿ ensina Liane, que atualmente cuida de 14 crianças no abrigo de Nilópolis, a maioria menores de 5 anos e nenhuma delas ainda disponível para adoção.

Um dos maiores avanços obtidos com o uso do cadastro foi, além da redução do número de crianças acolhidas em abrigos desde 2008, a devolução desses menores às suas famílias de origem. Segundo a promotora Gabriela Brandt, de todas as crianças que deixaram a situação de acolhimento após a criação do MCA, em cerca de 53% dos casos houve reintegração familiar e, em cerca de 18%, colocação em familia substituta.

Outro ponto positivo: no ano passado, de posse de informações do cadastro, uma força-tarefa do MP e do Tribunal de Justiça conseguiu regularizar a situação de 600 menores que estavam afastados da família, mas sequer tinham um número de processo.

¿ O sistema possibilita o diagnosticar o número e as condições das crianças acolhidas no estado. Mas, sozinho, ele não funciona. Junto com a implantação dele, o MP fez um trabalho de capacitação e conscientização da importância da atualização dos dados. O nosso maior objetivo sempre foi e será o de garantir à criança o direito à convivência familiar, seja numa família substituta, seja no retorno à família biológica ¿ diz a promotora Gabriela Brandt, atual gestora do MCA.

Depois da promulgação da Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009, nenhuma criança abrigada pode ficar mais de dois anos internada numa instituição, salvo raras exceções, e todas as que estiverem em situação de acolhimento terão sua situação revisada pela Justiça a cada seis meses. Na avaliação da procuradora Rosa Carneiro, a transparência proporciona maior cobrança e fiscalização:

¿ Agora todos sabem que é possível ver quando alguém deixa de fazer alguma coisa que deveria ser feita, prejudicando aquela criança. Se ela está há mais tempo no abrigo por falha de algum desses agentes, isso é fácil de detectar. Mas é bom ressaltar que estes dados também podem ajudar na formulação de políticas públicas ¿ diz a procuradora, acrescentando que projeto foi oferecido, por meio de um convênio, ao Conselho Nacional de Justiça.

De acordo com o último censo, atualmente, em todo o estado, existem 63 crianças acolhidas há mais de dez anos e 230 morando numa instituição há mais de cinco anos e há menos de dez anos.