Título: Dilma e a democracia
Autor: Virgílio, Arthur
Fonte: O Globo, 24/05/2008, Opinião, p. 7

A ministra Dilma Rousseff fez muito bem em mentir aos seus ignóbeis torturadores, à época da ditadura, para salvar a vida de companheiros de luta armada, porém fez muito mal em não dizer a verdade na Comissão de Infra-Estrutura do Senado Federal. Segundo palavras dela própria, "na democracia se fala a verdade". É isso mesmo. Mas ela não falou!

Menos de 24 horas depois de ter reafirmado não haver nenhum dossiê, mas apenas "banco de dados", a existência do documento delituoso foi comprovada. Infelizmente, não é todo mundo que é sincero no regime democrático. A compensação é que, com imprensa investigativa, Ministério Público diligente e Polícia Federal bem preparada, os fatos terminam ficando claros.

Tratarei precisamente do aspecto mais feliz da recente exposição da ministra. Não será sobre o PAC. Esse, em que pesem os números por ela exibidos, foi desnudado pelos senadores Tasso Jereissati e Kátia Abreu. Demonstraram eles que o programa não é senão a união de vários projetos preexistentes, alguns até em pleno andamento.

Falo do momento em que ela lembrou seu passado de inegável bravura pessoal e ousadia política. Pôs a vida em risco, padeceu torturas físicas e psicológicas que sempre haverão de merecer veemente repúdio. Ter passado por esse martírio, contudo, não faz dela, automaticamente, uma verdadeira democrata, como pretendeu sugerir ao Senado e à nação.

Sinto-me com legitimidade para discutir essa questão com a ministra onde ela quiser. Somos da mesma geração dos embates de 68, viemos do mesmo movimento estudantil. Enfrentamos a ditadura militar. Terminamos, entretanto, trilhando caminhos diversos. Ela fez a opção pelas armas, como se fosse possível enfrentar, com êxito, o poderio das Forças Armadas. Queridos amigos meus, colegas de escola, sucumbiram às violências a que foram submetidos nas enxovias do regime. Muitos outros brasileiros optamos pacientemente pela organização da sociedade, valendo-nos das poucas brechas que se pudessem abrir. Atuamos no então MDB, unimo-nos às resistências opostas por setores da imprensa, pela OAB, pela CNBB, e batalhamos por espaços factíveis, levando palavras de ordem como anistia, eleição direta para os prefeitos de capital e governadores, convocação de Assembléia Nacional Constituinte, Diretas-Já para presidente da República. Não aprovada a Emenda Dante de Oliveira, não hesitamos em tapar o nariz e ir ao Colégio Eleitoral da ditadura, para derrotar Paulo Maluf, eleger Tancredo Neves e José Sarney e dar início ao processo possível de transição democrática. Tudo isso sob o desdém de certos segmentos - desgraçadamente sectários - que se imaginavam destinados a derrotar o regime pela vitória no campo de batalha. Diziam, com ironia, que o MDB era o partido do "sim" e a Arena, do "sim senhor", e que, no fundo, coonestávamos a ditadura. Corremos riscos também. Nas ruas, nos diretórios estudantis, nos sindicatos, nas passeatas, nas panfletagens, nas reuniões do Centro Brasil Democrático, entidade legal do proscrito PCB. Fui, por exemplo, o único político do Amazonas a acompanhar o líder sindical Lula, quando ele respondia a processo, com base na Lei de Segurança Nacional, em Manaus. Para o aparelho repressor, todos éramos igualmente inimigos. Eu compreendia isso, com meus companheiros; Dilma, muito certamente, não!

Nossa opção, ao fim e ao cabo, mostrou-se correta. O país retornou à democracia. Graças a isso, Dilma Rousseff é hoje ministra de Estado e eu, senador. Ela deve, portanto, muito mais a pessoas como Teotônio, Ulysses e Tancredo o cargo que exerce do que eu estaria a dever a ela o mandato eletivo. É preciso dizer também que ela podia não ter bem consciência disso - era muito jovem e o Muro de Berlim ainda estava de pé -, mas sua luta não era pela democracia. Era para substituir uma ditadura por outra. Enfrentei, junto com ela, uma ditadura de direita, cada um a seu modo. Se ela tivesse sido vitoriosa, estaríamos, de novo, em campos opostos, porque ditadura de esquerda assassina e tortura também. Ou não?

ARTHUR VIRGÍLIO é líder do PSDB no Senado.