Título: Mulheres em campos opostos: da bolsa Louis Vuitton ao Bolsa Família
Autor: Melo, Liana
Fonte: O Globo, 04/05/2008, Economia, p. 34

Versão peruana do programa social atinge 37% dos distritos mais pobres.

LIMA e ANCASH. Maria Somosa Rosales vive com o marido e as duas filhas num povoado miserável, na serra peruana. A casa é feita de barro, e a família dorme no chão, sobre uma pele de carneiro para afugentar o frio. A sogra, Margarita, não enxerga direito e também não lembra exatamente quando nasceu. Sua certidão de nascimento indica que foi em 1926. Maria é uma das beneficiárias do Programa Juntos, a versão peruana do Bolsa Família, que, por enquanto, atende a apenas 330 distritos, dos 880 considerados os mais pobres do país. Entre eles estão Challhuayaco, em Ancash, onde mora Maria e onde a desnutrição crônica atinge 58% das crianças menores de 5 anos.

Enquanto isso em Lima, um grupo de sete mulheres, ricas, bem tratadas e ostentando símbolos de status ¿ como bolsas Louis Vuitton, óculos Versace e jóias que ornam anéis e colares ¿ se encontra, mensalmente, para conversar e degustar a gastronomia peruana, que começa a romper as fronteiras do país e ganhar o mundo com seus sabores exóticos. Essas sete mulheres são amigas de longa data e, carinhosamente, se auto-intitulam as Superpoderosas.

Reformas neoliberais começaram nos anos 90

Maria nunca viajou para muito longe, não sabe ler nem escrever e usa a ajuda financeira do governo, no valor de 100 soles (o equivalente a US$37), para suprir a alimentação familiar, baseada, sobretudo, no consumo de batatas. As Superpoderosas, por sua vez, vivem viajando e se orgulham de fazer compras entre Nova York, Miami e Buenos Aires. Momentaneamente, os endereços chiques da Europa estão proibitivos, já que o euro está muito valorizado.

Como a Louis Vuitton já anunciou que pretende abrir sua primeira loja na capital peruana, a novidade está animando as tardes festivas das sete amigas.

¿ Vai facilitar nossa vida ¿ suspira Diana Chiang, que ganhou o sorteio do último almoço, considerado o ponto alto do encontro mensal das amigas.

A cada encontro, todas elas depositam sobre a mesa US$100. Os US$700, sorteados ao fim da refeição, são gastos em bens de consumo até o último tostão pela vencedora. A brincadeira tem apenas uma regra: se uma delas ganhar mais de uma vez seguida, azar das outras.

Marios Mariategui, por exemplo, lembra que, da última vez que saiu do almoço com as verdinhas, gastou tudo na Daslu, em São Paulo, durante uma das muitas viagens ao Brasil. Ela adora o país, onde viveu durante os anos 70, quando o pai foi embaixador do Peru no Brasil.

Maria não foi convidada para a festa do crescimento. Já as Superpoderosas são as maiores beneficiárias dos indicadores de expansão do país. Elas são casadas com donos de mina, investidores e empresários. Seus maridos fazem parte da elite produtiva local.

Ainda que a festa esteja sendo capitalizada pelo presidente Alan García ¿ um dos artífices da moratória nos anos 80 ¿ os ventos da mudança começaram a soprar no país bem antes dele, que foi aluno do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, na Sorbonne, na França. As condições começaram a ser criadas nos anos 90, com as reformas neoliberais do então presidente Alberto Fujimori (1990-2000).

Antes de se envolver num megaescândalo ¿ ele foi acusado de ter levado uma fortuna e fugiu para o Japão ¿, Fujimori promoveu mudanças que ajudaram a arrumar as contas do governo e acabaram com a hiperinflação, desencadeada pelo antecessor García (1985-1990). O presidente Alejandro Toledo deu continuidade às mudanças, e García, ao voltar à Presidência, manteve o país na rota do crescimento.