Título: Aborto : o essencial do debate
Autor: Carlos Tórtima, José
Fonte: O Globo, 03/01/2008, Opinião, p. 7

Li com atenção e interesse o bem escrito artigo da pesquisadora Patrícia Rangel, do Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro, intitulado "Aborto: debate essencial", publicado no GLOBO de sexta-feira, 28 de dezembro. A autora deixa transparecer claramente seu ponto de vista a favor da incondicional descriminalização do aborto. Alega que chegou a hora de o legislador superar os preconceitos, de fundo basicamente religioso, e seguir o exemplo da maioria dos países desenvolvidos, onde a deliberada interrupção da gravidez já não configura infração penal. Insinua ainda a articulista que o presidente Vasquez, do Uruguai, não seria progressista, como dizem, pois prometeu vetar o projeto, em tramitação no Congresso daquele país, que despenaliza o aborto.

Bem, antes de dizer por que não concordo com as opiniões da sra. Patrícia Rangel sobre tão delicado tema, quero deixar claro que não sou religioso e que seria injusto, sabem bem os que me conhecem, tachar-me de conservador. Portanto, não é por preconceito religioso ou retrógrado moralismo que me oponho à legalização do aborto, mas pelo que entendo ser um dever ético de respeito à vida. Já tornei pública minha posição a favor do planejamento familiar que tantas críticas recebe da Igreja. Mas, com o aborto, é diferente. Aqui, o que está em jogo é a vida humana já existente, ainda que em gestação, não se tratando apenas de evitar a concepção dessa vida, o que poderia ficar ao livre arbítrio dos casais.

O essencial nesse debate é situar a condição humana do feto que se pretende eliminar pela interrupção da gravidez. Com todo o respeito, acho plenamente equivocada a abordagem que, a esse respeito, fez a sra. Rangel em seu artigo, ao afirmar que, sendo a permissão para o aborto um problema de saúde pública, a questão se resumiria a respeitar, ou não, a decisão da mulher sobre o seu próprio corpo. Esta visão, reducionista e simplificadora do que representa o ser humano em desenvolvimento intra-uterino, resgata antiga crendice da primeira metade da Idade Média, quando não se punia o aborto ao absurdo argumento de que o feto, tal como o baço ou o fígado da gestante, pertenceria ao seu próprio corpo.

Também não me parece razoável invocar o problema da saúde pública, de fato existente, decorrente da prática dos abortos clandestinos. Ora, as epidemias também representam um sério problema de saúde pública e, em alguns casos, poderiam ser mais facil e rapidamente debeladas com a eliminação, pura e simples, das pessoas já infectadas. Mas passaria pela cabeça de alguém semelhante solução "pragmática", ainda que o número de vidas poupadas pelo fim do contágio fosse infinitamente maior do que as sacrificadas em nome da saúde pública?

Por último, não impressiona o argumento de que, na maioria das nações desenvolvidas, o aborto é legalizado. Ora, desenvolvimento econômico não é paradigma ético e não custa lembrar que foram exatamente essas nações desenvolvidas, e não as, por elas, colonizadas e espoliadas durante séculos, quem, na disputa por hegemonias econômicas e políticas, promoveram as grandes matanças nas guerras do século passado, lançaram bombas atômicas sobre populações civis, despejaram napalm sobre florestas e aldeias e ainda continuam detendo os maiores arsenais de destruição em massa. Diante de tanta barbárie, de fato, é compreensível que o aborto passe por lá quase despercebido como violação da vida humana.

JOSÉ CARLOS TÓRTIMA é advogado.