Título: Assassinato sem assassinos
Autor: Batista Jr., Paulo Nogueira
Fonte: O Globo, 29/12/2007, Opinião, p. 7

"O Estado é o mais frio dos monstros frios." Friedrich Nietzsche.

AInglaterra conseguiu produzir o seguinte fato extraordinário: um assassinato sem assassinos. Há poucos dias, ficamos sabendo que a Independent Police Complaints Commission (IPCC) absolveu os últimos quatro policiais que ainda poderiam sofrer sanções por envolvimento na morte do brasileiro Jean Charles de Menezes em 2005. Em maio último, a IPCC já havia inocentado outros onze policiais da Scotland Yard. Entre os últimos quatro absolvidos, está uma tal de Cressida Dick, hedionda já no nome, que supervisionou a operação contra Jean Charles. Por incrível que possa parecer, a sra. Dick foi promovida em 2006, passando de comandante a subcomissária.

Digito esse parágrafo e paro. Será que o leitor sabe do que estou falando? A imprensa brasileira não deu a atenção merecida a esse caso escandaloso. Em 22 de julho de 2005, Jean Charles, que estava a caminho do trabalho, foi assassinado com vários tiros na cabeça, disparados à queima-roupa. Os policiais confundiram o brasileiro com um terrorista árabe que teria participado de atentados na véspera, em Londres.

Jean Charles era um modesto imigrante, de 27 anos, com pouco tempo de Inglaterra, que trabalhava para mandar dinheiro para a família no Brasil. Tipo da pessoa cujo destino não desperta grande interesse na imprensa brasileira. Nem no governo, diga-se também. Não quero ser injusto com nossos diplomatas, que prestam muitos serviços ao país, mas não me parece que o Ministério das Relações Exteriores tenha reagido de forma adequada à decisão da IPCC. O Itamaraty limitou-se a divulgar uma nota de dois parágrafos, manifestando seu "descontentamento" com a decisão e reiterando que continuará a prestar à família Menezes "a assistência cabível no caso". Nota fria e burocrática.

São milhões os Jean Charles espalhados pelo mundo - imigrantes brasileiros pobres, geralmente ilegais, que procuram nos Estados Unidos, na Europa ou em outras partes as oportunidades que o Brasil lhes negou. Mas a nossa política externa ainda não parece dar grande importância a esse tema.

Talvez porque a situação seja nova para o Brasil. Até o início da década de 1980, o nosso país era um pólo de atração para imigrantes de várias partes do mundo. Com o longo período de quase estagnação, a que fiz referência na coluna de sábado retrasado, o quadro se inverteu. O Brasil se tornou menos atraente para os estrangeiros e, pela primeira vez, passou a exportar brasileiros em grande quantidade.

O fenômeno é mais acentuado em outros países. México, Equador e El Salvador, por exemplo, exportaram uma parte ainda maior da sua força de trabalho. Nesses e em outros países, as remessas de imigrantes têm grande importância para as contas externas e a economia nacional. No Brasil, país de proporções continentais e fisicamente distante do mundo desenvolvido, a emigração de trabalhadores não tem o mesmo peso. Mas, nos últimos 25 anos, aumentou muito o número de brasileiros que vivem no exterior, não só em termos absolutos, mas como percentagem da nossa população total.

Só muito recentemente, com a crise financeira nos EUA e a recuperação da economia do Brasil, começaram a chegar as primeiras notícias de que os brasileiros expatriados estão retornando ao país.

Que o Brasil não os decepcione outra vez! O país precisa oferecer futuro aos jovens como Jean Charles. A emigração para os países desenvolvidos é um caminho geralmente penoso, sofrido. Quem toma essa decisão corre o risco de ser barrado, deportado e até morto na fronteira. Quando consegue entrar, fica sujeito a discriminações e humilhações. É tratado como indivíduo de segunda classe, mesmo nos casos relativamente raros em que consegue legalizar a sua permanência. E se for confundido com um terrorista árabe, acaba sumariamente executado pela Scotland Yard ou seus equivalentes em outros países "civilizados".

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. é economista e diretor-executivo pelo Brasil e mais oito países no Fundo Monetário Internacional. E-mail: pnbjr@attglobal.net.