Título: Aos que apostam na impunidade: isso acabou
Autor: Brígido, Carolina e Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 02/09/2007, O País, p. 8

Ministro relator do caso do mensalão se define como "seco e impessoal", critica foro privilegiado e elogia provas.

Sexta-feira de manhã, três dias após o Supremo abrir o maior processo que já passou pela Corte, o relator do caso, Joaquim Barbosa, ainda saboreava o êxito de convencer os colegas do tribunal a pôr no banco dos réus os 40 acusados no caso mensalão. Ele acabara de chegar de uma consulta ao osteopata, para tentar se livrar de dores nas costas que o afligiram durante o julgamento: "Já tentei de tudo, acupuntura, RPG, quiropata...". O ministro sentou-se à beira de uma poltrona para começar a entrevista. Não agüentou. Menos de 15 minutos depois, assumia a mesma posição em que ficou boa parte dos cinco dias do julgamento: em pé atrás da poltrona, com as mãos apoiadas no encosto. Ex-revisor do Senado, o ministro fala com saudades dos tempos do senador Paulo Brossard, a quem confessa admirar. Barbosa, que se formou pela UnB e fez doutorado na Sorbonne, espera que o julgamento dos réus seja o marco do fim da impunidade no país. Conta que seu gabinete foi inundado por mensagens e que pôde sentir o pulso da opinião pública. A única coisa que se recusou a comentar foi a troca de e-mails entre os colegas Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, que escreveu que Barbosa daria um "salto social" ao relatar o mensalão. Como primeiro integrante negro da Corte, a resposta dele foi: "O Brasil terá que se acostumar com a minha cara. E já se acostumou".

Carolina Brígido, Fernanda Godoy, Francisco Leali e Sergio Fadul

O senhor imaginava que seu voto fosse aceito em larga escala pelos outros ministros?

JOAQUIM BARBOSA: Esperava, mas não tinha muita clareza sobre como a minha mensagem chegaria aos outros ministros. É complicado. Num colegiado de 11, é difícil se fazer entender.

O senhor tinha estratégia para facilitar as discussões?

BARBOSA: Quis ser o mais didático, o mais claro possível. Faço isso em todos os votos.

A ordem do julgamento foi estudada previamente?

BARBOSA: Foi pensado, mas um pouco também resultado das circunstâncias do julgamento. Comecei com o item 5, gestão fraudulenta, porque eram cinco da tarde quando começou o julgamento. Não ia levar a julgamento os outros itens, mais complicados. Na hora, decidi. O voto nem estava impresso.

Preocupa a possibilidade de prescrição dos crimes?

BARBOSA: Quem tem que estar preocupado com isso é o procurador-geral da República. Ele é o autor da ação penal.

Antes da aceitação da denúncia, o senhor costumava demonstrar preocupação com a prescrição. Dizia que o STF não tem estrutura para suportar um processo deste tamanho.

BARBOSA: Esse assunto, chega. Vamos falar de coisas mais substanciais. Pronto.

Como o senhor decidiu a ordem de votação dos casos?

BARBOSA: A denúncia contém sete itens relativamente autônomos. São sete historinhas ali. Eu me esmerei para tornar essas sete historinhas bem inteligíveis. Mas fiz o possível também para que houvesse um encadeamento lógico entre elas.

Muita gente assistiu ao senhor na TV Justiça. O senhor pensa no público ao buscar essa clareza na redação dos votos?

BARBOSA: Sempre penso que meu público é a nação. Não são os advogados, não é a academia, de onde venho. Nossas sessões são indecentemente transparentes, para citar o ministro (aposentado) Sepúlveda Pertence.

Um processo deste tamanho, com tantos réus, é saudável?

BARBOSA: É uma insanidade. É uma irracionalidade tipicamente brasileira uma Corte com a grande missão que o Supremo tem, da qual a sociedade espera muito. Há coisas candentes à espera de solução, coisas com impacto social e político enorme. Que uma Corte como essa se dê ao luxo de ficar cinco dias, de manhã e à tarde, discutindo simplesmente se recebe ou não a denúncia é para mim uma irracionalidade. Isso, que fizemos aqui, nos Estados Unidos é entregue a um júri de leigos na comarca, que se reúne e decide.

É uma distorção causada pelo foro privilegiado?

BARBOSA: Exatamente.

Existe a interpretação de que foro privilegiado é bom porque, a partir do STF, não há instâncias para contestar a decisão, e a punição seria mais provável. O senhor concorda?

BARBOSA: A experiência do Supremo no julgamento de processos com foro privilegiado é muito recente, desde 2002. Estamos em 2007. Vamos ver se funciona. E, se funcionar, vamos ver se vão deixar o foro privilegiado do jeito como está.

Na saída do julgamento do ex-presidente Fernando Collor, o ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira disse: "Ficou claro para mim que os iguais têm muita dificuldade de julgar e condenar os iguais". O senhor concorda?

BARBOSA: Essa é uma característica da sociedade brasileira que se reflete no Judiciário. Ele quis dizer que as elites se autoprotegem. É mais ou menos isso. É uma constatação que faço também. Espero que esteja ocorrendo uma mudança.

No julgamento do caso Collor, aquele governo não existia mais. No mensalão, os investigados remetem a um governo em vigor. Isso faz do julgamento do mensalão mais difícil?

BARBOSA: Sem dúvida. A qualificação sociopolítica das pessoas deste caso é muito mais elevada. Neste caso há parlamentares, dirigentes de partidos, donos de banco, uma estrutura de publicidade enorme. Ali era um ex-presidente já decaído. É completamente diferente. Sem contar o número de pessoas: lá eram nove e aqui, 40.

O número de réus dificulta?

BARBOSA: Claro que dificulta. E muito. Imaginem como vai ser o julgamento final! Imaginem! Serão cinco dias de sessões só para ouvir os advogados.

Este julgamento vai mudar a opinião pública no sentido de que as instituições colaboram para a impunidade?

BARBOSA: Espero que o julgamento marque um divisor de águas. E tenha sinalizado àqueles que sempre apostaram na impunidade que isso já acabou.

Se os acusados forem absolvidos, a sociedade entenderá?

BARBOSA: Ficou claro o grau de robustez das provas, que variava muito em relação aos acusados. Para uns dava para tirar conclusão de que realmente havia provas. Para outros, prova de grau médio. E para outros, indícios mínimos. O procurador-geral terá que se desdobrar para robustecer essas provas.

Dá para dizer em que gradação de indícios se encontra a maioria dos réus?

BARBOSA: Corrupção passiva está muito bem documentada.

Como vê seu papel como o único ministro negro no STF? Considera que tem uma responsabilidade maior por isso?

BARBOSA: Não. Ao acordar, não olho a cor da minha pele.

Mas as pessoas olham?

BARBOSA: No início, olhavam muito. Como disse quando fui nomeado: o Brasil terá que se acostumar com a minha cara. E já se acostumou.

E como viu o comentário da ministra Cármen Lúcia num e-mail, de que, após o julgamento, o senhor teria um salto social?

BARBOSA: Sobre isso não quero comentar.

Um artigo de Elio Gaspari fala das dificuldades que o senhor enfrentou...

BARBOSA: Ele captou como sou como ministro. Disse: é um ministro seco, impessoal, e não faz questão de ouvir o timbre da própria voz. Sou isso mesmo. Não suporto essas relações pessoais, a coisa do jeitinho brasileiro, do amigo que vem fazer "embargos auriculares". Em razão desse comportamento, tenho tranqüilidade para decidir. Ninguém se aproxima para fazer...

O senhor tem fama de não receber advogados.

BARBOSA: Não é verdade. Tenho uma lista dos advogados que recebo semanalmente. Não permito é que grandes escritórios façam do meu gabinete feudo deles. Eles não têm privilégio. Eu os recebo como recebo o mais humilde dos advogados. Essa fama de chato com advogado eu gosto, porque me dá tranqüilidade para julgar. Não sou popular entre os advogados, mas meu objetivo não é esse.

Como se define politicamente?

BARBOSA: Sou afastado da política. Sou social-democrata no estilo europeu. Não vejo nada parecido aqui: PT, PSDB, nada disso. Partido social-democrata que reconhece a economia de mercado, mas com forte atuação de Estado na área social. Esse para mim é o ideal de Estado, que não temos. Não vejo nenhum político, partido político brasileiro com esse perfil.

O episódio da divulgação dos e-mails (pelo GLOBO) fez com que os ministros votassem "com faca no pescoço" ou não?

BARBOSA: O voto fala por si. E as reações que o voto provocou nos meus colegas à medida que o julgamento avançava foi a mesma que percebi nas bases.

Quem está de fora não imaginava que ministros do Supremo fossem tão informais nos diálogos entre eles.

BARBOSA: Isso faz parte das enormes mudanças pelas quais o Supremo vem passando nos últimos anos. O tribunal nunca foi tão diverso como hoje. Tem duas mulheres, um negro. Também em termos de profissões e de origens: Ministério Público, magistratura, magistério...

O ministro Lewandowski chegou a procurá-lo para desfazer qualquer mal-entendido?

BARBOSA: Chega, não quero falar disso. Vocês só querem saber do ti-ti-ti. Não. Sou o mais alheio a esse ti-ti-ti de corredor.

É normal ministros trocarem idéias antes de julgamentos?

BARBOSA:Não temos tempo para isso. Imagina! Nas outras sessões, a gente fica sabendo do assunto praticamente na hora do julgamento. Este foi um caso excepcional. Não há tradição, não que seja proibido, não.