Título: Lei Rouanet: preservar o mérito Leonel Kaz
Autor: Kaz, Leonel
Fonte: O Globo, 16/04/2009, Opinião, p. 7

O Ministério da Cultura reclama que o Museu do Futebol não menciona que seus recursos tiveram origem pública, a partir de isenção fiscal. O Museu do Futebol sempre honrou seu compromisso - e seu orgulho! - de ter sido construído a partir de verbas públicas, aliás com o concurso das três instâncias do Poder Executivo: a União, o Governo do Estado e a Prefeitura de São Paulo. O Museu, em seis meses, recebeu 200 mil visitantes, tem saído nas páginas do "New York Times" e do "Le Monde"; recebeu a visita do primeiro ministro inglês e do presidente da Fifa, que mencionou: "Esse não é um museu sobre o jogo, mas sobre a cultura de um povo. Um modelo a ser exportado para todo o mundo, porque é isso o que o futebol representa". Ponto para o Ministério da Cultura.

O Ministério da Cultura reclama que os livros de arte não devem servir para distribuição por empresas que fazem uso da renúncia fiscal. Aqueles que transgridem a lei e fazem do livro um instrumento de ganância ou simples rapina, devem ser punidos. Mas, e aquelas empresas que cumprem fielmente tudo quanto se origina da própria criação do Instituto Nacional do Livro, a partir de Mário de Andrade, Capanema, Augusto Meyer? Será que o mercado é capaz de sustentar a pesquisa histórica e a pesquisa de imagens que criam um verdadeiro banco de dados para o ensino, com grande parte das tiragens distribuídas a bibliotecas? Os livros editados nesse país, que não best-sellers, devem continuar a merecer o amparo legal. Ponto para o Ministério da Cultura.

Recentemente, na exposição Vik Muniz, houve um recorde de visitação no Museu de Arte Moderna do Rio: 53 mil pessoas. E mais 150 mil são esperadas no Masp, em São Paulo. Desde a inauguração, tudo foi formulado com o espírito de aproximar a grande arte do grande público: lá vieram os catadores de lixo de Jardim Gramacho, com quem o artista trabalha. A partir daí, todos os dias, ônibus fretados trouxeram multidões - certamente pela primeira vez - ao MAM: a turma do AffroReggae e dezenas de outras ONGs, os sambistas da Acadêmicos da Rocinha e de dezenas de outros morros, o grupo Galpão Aplauso, internos do Hospital Pinel, presidiários, assim como portadores de deficiências, escolares. Ponto para o Ministério da Cultura.

O Ministério reclama que há uma concentração de verbas da Lei Rouanet no Sudeste e nas capitais do litoral. Ora, não é assim que se fez nossa história? Gilberto Freyre já mencionava que ficamos atrelados à costa "como caranguejos". Há povos andinos que consideram o futuro como um vasto território que se estende para trás; assim, o passado é exatamente o que está diante de nós, porque ele aconteceu e porque o podemos ver. Da mesma maneira na cultura, o que temos diante de nós é nossa história. Sempre houve concentração, desde os gregos em Atenas à civilização francesa em Paris. A Réunion des Musées Nationaux, órgão tão importante quanto qualquer Ministério francês, centraliza a maior parte de seus recursos em Paris. E não em Honfleur, no litoral da Bretanha, a quem compete criar ostras para o deleite da gula. Agora, o deleite da cultura, a indústria da cultura se alimenta da história.

Nos Estados Unidos, em outro modelo onde a indústria cultural funciona, a decisão do investimento é feita diretamente entre o produtor e o empresário. Do jeito que a reforma da Lei Rouanet está sendo conduzida, o Ministério pretende estabelecer limites estreitos. Como é possível equivaler pessoas e medidas distintas? Enquanto na educação o que mais se discute são a qualidade do ensino e o mérito, a cultura vai abandonar a qualidade e o mérito?

Apesar de todos esses pontos, tão positivos, por que o Ministério quer transformar em regra a exceção e jogar por terra tantas conquistas? Por que exatamente as empresas que utilizam a lei devem ser punidas, enquanto tantas outras se omitem do seu papel de contribuir com a cultura? É crucial manter o mérito daquilo que o Ministério e a sociedade já conquistaram para os que criam, os que investem e os que usufruem dos benefícios da cultura.

LEONEL KAZ é curador do Museu do Futebol, editor de Aprazível Edições e foi Secretário de Cultura e Esportes do Estado do Rio.

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