Título: ABI flertou com regime que depois combateria
Autor:
Fonte: O Globo, 11/12/2008, O País, p. 8

Costa e Silva foi homenageado na sede da entidade; e Médici, saudado pela associação ao assumir Presidência.

Chico Otavio

AABI incomodava tanto, na sua luta contra os militares, que o terrorismo de extrema direita a incluiu no roteiro de atentados que sacudiram o país nos anos finais do regime. No dia 19 de agosto de 1976, uma explosão destruiu por completo o sétimo andar da casa, onde ficava a presidência e a administração. Pavor no passado, a lembrança do ataque é hoje motivo de orgulho, lembrada como marco no papel dos jornalistas no enfrentamento da ditadura.

Episódios como esse são os que emergem toda vez que a história da ABI se cruza com os chamados Anos de Chumbo, especialmente após a edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Eles construíram a memória da associação no período. Mas um estudo recém-concluído, da historiadora Denise Rollemberg, da UFF, mostra um outro lado da entidade, marcado por cautela, diálogo e até afagos nos generais, entre eles o presidente da República, Costa e Silva, recebido em homenagem na sede histórica da entidade.

Estudo contesta memória da ABI

Na quinta reportagem da série sobre os 40 anos do AI-5, o estudo de Denise contesta a idéia de que entidades como a ABI resistiram ao regime desde o primeiro momento. Com base nas atas das reuniões ordinárias e extraordinárias da associação, ocorridas entre 1964 e 1974, ela sustenta que essa memória foi superdimensionada, uma vez que, dentro dos próprios quadros da entidade, houve diretores que colaboraram e outros que tentaram impedir o alinhamento da ABI no campo da oposição à ditadura militar.

O levantamento exibe momentos delicados da associação. Num deles, o conselheiro Antônio Carbone denunciou que, em maio de 1973, "o ex-conselheiro Acioli Lins se encontra em Brasília procurando entender-se com senadores e deputados, aos quais declara que, na ABI, alguns associados exercem atividades subversivas". Um mês antes, o sócio João Antônio Mesplé já reclamara, também em ata, que ele e outros colegas haviam sido delatados por Acioly.

Outros três episódios que emergem das atas, rastreados pela pesquisadora, são emblemáticos: quando o presidente da ABI em 1965, Celso Kelly, busca o apoio da entidade para assumir o posto de interventor no Sindicato dos Jornalistas do Rio; a homenagem da entidade ao general Costa e Silva em 1968; e o telegrama assinado pelo presidente da casa, Danton Jobim, em 1969, congratulando-se com o recém-empossado presidente-general Emílio Garrastazu Médici.

Advogado, ex-diretor de jornal e professor de jornalismo, Kelly assumiu a presidência da ABI em setembro de 1964. Desde o início, investiu no diálogo com militares, alegando a necessidade de proteger jornalistas perseguidos ou tentar obter ao menos melhores condições nas prisões.

O problema é que o presidente exagerou na dose. A ata de 19 de outubro de 1965 registra o debate sobre a intervenção do Ministério do Trabalho no Sindicato dos Jornalistas, tendo à frente Kelly. Ele queria aceitar, mas recuou diante das críticas de outros conselheiros. Seis meses depois, Kelly capitularia ao renunciar para assumir a direção do Departamento Nacional de Ensino, do Ministério da Educação, ocupando a função "em prol da educação moral e cívica da mocidade".

- As deferências ao regime estão presentes em diversos momentos - diz Denise.

Uma delas, talvez a mais polêmica, ocorreu nas comemorações do 60º aniversário da entidade, em abril de 1968. Costa e Silva, o general-presidente que promulgaria oito meses depois o AI-5, colocando um ponto final no que ainda restara dos direitos civis, fora recebido com entusiasmo na própria ABI.

Denise Rollemberg apurou que a homenagem fora proposta por Danton Jobim, presidente da ABI na época e que viraria senador pelo MDB de 1971 e 78, ganhando destaque na memória da resistência democrática. Em reunião no início daquele ano, Jobim anunciava a honra concedida:

- Apesar das tensões que a visita causou, foi na presença de Costa e Silva que se festejou a data.

Para fazer o convite, Jobim compareceu pessoalmente ao Palácio Laranjeiras e ouviu que o presidente voltaria do Rio Grande do Sul, no dia marcado, especialmente para receber a homenagem. No fim do evento, ambos tiveram de enfrentar ruidosos protestos na porta do prédio, na Rua Araújo Porto Alegre, no Centro.

- Danton era um homem experiente, vivido, que acreditava no seu poder de diálogo mas que nunca se ajoelhou diante da ditadura - defendeu o atual presidente da ABI, Maurício Azedo.

Azedo defende postura da ABI

Azedo disse que ninguém, nem a ABI, ao longo da ditadura, teve uma postura única porque as atitudes e os comportamentos derivavam da posição da força que se enfrentava:

- A ABI teve sempre uma posição clara de denúncia das agressões à liberdade de imprensa, mas sem bravata e provocações ao poder militar instituído.

De fato, Denise reconhece que, apesar da ambigüidade até meados dos anos 1970, essa posição não impediu que se fizessem declarações a favor de jornalistas cassados e presos, na seqüência do fechamento político que o AI-5 promoveu no país.

- Costa e Silva foi à ABI porque a entidade estava negociando a fim de assegurar os exercício da profissão para dois valorosos colegas perseguidos, Antônio Callado e Léo Guanabara. Era o diálogo do desarmado perante o poder armado - sustenta Maurício Azedo.

Telegrama apóia posse de Médici

Mas o diálogo, muitas vezes, flertou com o apoio. Com o afastamento de Costa e Silva e a posse de Médici, a ABI e seu presidente saudavam o novo general-presidente com esperança e entusiasmo. Na ocasião, foi-lhe enviada mensagem, assinada por Danton Jobim. Com orgulho, aprovou-se a proposta de um conselheiro de transcrevê-la na íntegra em ata. O documento diz que, no discurso de posse, a associação encontrou posições que coincidem com as "ardentes aspirações dos homens de imprensa, constantemente renovadas pelo voto de nossas assembléias em favor da paz e da concórdia entre os brasileiros, sob a égide de um autêntico sistema democrático-representativo".

Ao justificar o seu trabalho, a historiadora disse que é preciso compreender que essas forças da sociedade não atuaram exclusivamente em campos bem delimitados - a favor ou contra - e sim naquilo que o historiador francês Pierre Laborie chamou de zona cinzenta: o enorme espaço entre os dois pólos - resistência, colaboração e apoio.

- A ABI não era coesa e abarcava embates que desapareceram na memória.