Título: CLIENTELISMO DIGITAL E FRAUDE
Autor: RODRIGO BAGGIO
Fonte: O Globo, 24/08/2006, Opinião, p. 7

Cada ciclo da História produz soluções geniais e seus próprios venenos. A era do conhecimento, por exemplo, gerou uma verdadeira revolução na face do mundo e trouxe conquistas efetivas para a sociedade, mas, por outro lado, a tecnologia da informação, seu principal instrumento, vem se convertendo numa bandeira em favor de causas pouco nobres, quando não ilícitas. Inclusive na cena política.

No caso do Brasil, marcado por contrastes sociais gritantes, a promessa de democratização da informática virou arma de sedução em discursos de políticos e candidatos a cargos públicos. Do Oiapoque ao Chuí, há sempre alguns deles transformando ônibus em laboratório de computação e tentando promover a inclusão digital com um simples clique. Os telecentros que nascem a partir dessas iniciativas não adotam modelos eficazes de ensino, gestão e sustentabilidade e tratam a informática apenas como acessório. São ações assistencialistas que não pretendem transformar o cenário social, começam e terminam sem maiores conseqüências e deixam as despesas por nossa conta.

No momento em que uma poderosa ferramenta como a tecnologia da informação, em vez de servir à inclusão social, tem seu uso motivado pela irresponsabilidade e por barganhas políticas, o assunto toma o rumo do delito. Sai do plano das práticas inofensivas e torna-se má-fé, desperdício de dinheiro público, levando a um lastimável clientelismo digital. Diariamente, já nos acostumamos a ler sobre isso: proliferam as máfias ávidas por superfaturar computadores, transportar equipamentos e montar telecentros, bem como obter vantagens onde quer que as chances se apresentem e as omissões permitam ¿ como nas áreas da saúde, da educação ou qualquer outra.

À semelhança dos outros setores, somente a formulação de políticas públicas em inclusão digital, aliada a sanções legais contra abusos, poderá construir um caminho para planejar, direcionar e controlar a aplicação dos recursos na área, garantindo não só a lisura e a eficiência dos programas, como sua continuidade. Com o estabelecimento de diretrizes, prioridades, avaliações e fontes de investimento, não haverá tantas brechas para transgressões praticadas em nome de uma luta justa. O próprio governo seria poupado de se justificar a cada episódio escuso envolvendo parlamentares com esquemas de superfaturamento.

Mas não se pode pensar em políticas públicas consistentes, dentro e fora da área tecnológica, sem que estas reflitam as necessidades e aspirações dos segmentos de baixa renda e sem que a sociedade civil participe de sua elaboração, sobretudo o setor da cidadania. Uma referência interessante é a área do meio ambiente, que conduz as suas questões através de co-gestão entre os setores privado e público e as ONGs. Precisamos de articulação similar, uma espécie de Comitê Gestor da Inclusão Digital, com atuação intersetorial. Um organismo que funcione nos moldes do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), um dos nossos modelos de governança mais bem-sucedidos e com reconhecimento internacional.

E por falar em CGI.br, seus integrantes mantêm constantes pesquisas acerca de fraudes cometidas por meio da Internet, outro grande foco de preocupação. As chamadas e-fraudes cresceram 1.313% entre 2004 e 2005, chegando a quase 12 mil ocorrências anuais. Combater também esse dano, através de ações preventivas e educativas, faz parte do compromisso de não tolerar, em qualquer instância, que a tecnologia seja utilizada como instrumento para ferir a ética e os direitos dos cidadãos.

Toda essa escalada de lesões a indivíduos e grupos nos remete à importância de discutir o uso da tecnologia da informação e fazer dela um meio de conhecimento crítico da realidade, desenvolvimento social e econômico. Afinal, mesmo em relação a países da América Latina, como Argentina, Chile e México, o Brasil apresenta baixo índice de oportunidades proporcionadas pela informática ¿ conforme mensurado recentemente numa pesquisa da União Internacional de Telecomunicações junto a 180 países.

Na pesquisa, em que ocupamos o 71º lugar, levam-se em conta diversas condições para a democratização e a disseminação da tecnologia, como o percentual de acesso da população à Sociedade da Informação, o potencial de inserção de novos segmentos, a infra-estrutura tecnológica (redes), a cobertura e os preços da telefonia móvel e, ainda, o custo de conexão à Internet. Duas boas surpresas foram a Coréia do Sul, que aparece em primeiro lugar, e a Índia, o país que mais ampliou as oportunidades digitais nos últimos cinco anos: 73%. A melhor posição de países da África e a China, que cresceu 48%, também contribui para reforçar que mudanças só são possíveis com disposição política e monitoramento por parte da sociedade ¿ o que nos mantém, ainda, a milhares de cliques de distância de uma verdadeira inclusão digital.