Título: Acordo de paz
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 06/06/2006, Economia, p. 22

A BR-163 é a mais desejada pelos produtores de soja e a mais temida pelos ambientalistas. Ontem, dia do Meio Ambiente, a ministra Marina Silva anunciou a licença definitiva para o asfaltamento da estrada que corta a Terra do Meio, onde é ainda mais rica a diversidade brasileira. O gesto ousado de Marina Silva é para dizer que é possível a conciliação entre meio ambiente e economia.

Para tornar a BR-163 aceitável, o governo anunciou a criação de novas unidades de conservação, de parques, demarcou terras indígenas, criou formas de proteção da floresta. Segundo o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, é a primeira vez que se dá uma licença já com o projeto de desenvolvimento sustentável junto e negociado com todas as partes em debate.

No discurso no Palácio, a ministra Marina Silva elogiou os empresários brasileiros que estariam, segundo ela, fazendo concessões exatamente para se encontrar um terreno comum entre desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente.

Cedo para comemorar, mas vale a tentativa de encontrar um meio-termo, um campo comum, com concessões recíprocas.

Estamos longe da conciliação. Os empresários querem a flexibilização das exigências ambientais sem explicar o que isso significa. Alguns ambientalistas temem qualquer hidrelétrica, qualquer nova estrada em área de fronteira e qualquer novo projeto agropecuário.

É inegável que o Brasil precisa aumentar o crescimento econômico e a oferta de emprego, mas certos avanços têm sido, na verdade, insensatos retrocessos porque podem provocar, ao fim de alguns anos, apenas mais destruição e pobreza.

A Cuiabá-Santarém hoje é uma estrada quase intransitável, que tira produtividade da soja que vai usar o Porto da Cargill em Santarém para ser exportada. O governo anunciou ontem que começará a repará-la com o trabalho do Exército e que assinará, em breve, uma Parceria Público-Privada para asfaltá-la. Quando ela estiver asfaltada, as terras da margem ficarão muito valorizadas, a grilagem terá mais incentivo para avançar sobre a preciosa Terra do Meio.

O governo avisa que já aprovou preventivamente as medidas que vão proteger as terras em torno da estrada.

¿ Na parte mais vulnerável, 80% das terras são unidades de conservação ou terras indígenas demarcadas ¿ disse Capobianco.

Pode ser que a região esteja protegida. Há riscos. Não de exploração sustentável e racional, mas de grilagem de terra pública com desmatamento predatório, como é feito hoje.

Razão para temer o pior existe. Só em três anos do governo Lula, 70 mil quilômetros quadrados de floresta foram destruídos. No ano passado, houve uma queda do ritmo de destruição.

O desprezo do Brasil pelo meio ambiente é tal que hoje deve cair por decurso de prazo o projeto que transforma o cerrado em patrimônio nacional. Com dois terços do bioma destruídos em 40 anos, o cerrado está minguando, como acabei de ver em recente viagem ao Parque Grande Sertão Veredas.

Uma comissão especial foi criada para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reconhece o cerrado como patrimônio nacional. O presidente da comissão, deputado Ricarte de Freitas, já avisou que, se hoje não houver quórum, ele vai arquivar a proposta. Até agora, de 16 reuniões convocadas, apenas a primeira foi realizada, 4 foram canceladas e, em 11, não se obteve quórum.

Mesmo a Mata Atlântica, mais valorizada e conhecida, tem apenas 7% da cobertura original e o projeto que regulamenta a sua proteção está há inexplicáveis 14 anos no Congresso sem ser aprovado.

Se funcionar o projeto de fazer a estrada cercando-a de plano de sustentabilidade, o país terá, de fato, dado um passo adiante. É uma aposta ousada num país com tão pouco apreço à lei e numa região com tanta história de banditismo.

Há outros desafios pela frente na linha dessas conciliações. Projetos hidrelétricos, como os do Rio Madeira, que são defendidos pelos seus construtores ¿ Furnas e Odebrecht ¿ pela área energética do governo, mas temidos pelo Meio Ambiente como ponta de lança de um projeto que pode acelerar a destruição da maior floresta úmida do planeta.