Título: CONTRABANDO DIPLOMÁTICO
Autor: Evandro Éboli
Fonte: O Globo, 11/03/2006, Economia, p. 25

PF prende quadrilha da qual faziam parte representantes de 5 embaixadas estrangeiras

Uma ação conjunta da Polícia Federal e da Receita desarticulou ontem o esquema de uma quadrilha que contrabandeava produtos importados e contava com a participação direta de 20 autoridades diplomáticas de cinco países com representação no Brasil ¿ três do continente africano e dois do Oriente Médio. Batizada de Operação Safári, a investigação resultou na prisão de seis brasileiros, entre os quais, Hamilton Ferreira dos Reis, servidor do Ministério das Relações Exteriores.

O esquema envolvia a compra de caixas de uísque, perfumes, aparelhos eletrônicos e outros produtos na loja Brasif (responsável pelo free shop nos aeroportos do país), em Brasília, autorizada a servir com exclusividade o corpo diplomático estrangeiro na capital. A mercadoria era comprada oficialmente pelas embaixadas ¿ com a conivência de funcionários ¿ a preço menor que o de mercado, devido à isenção de imposto, e revendida mais caro para clientes dos contrabandistas brasileiros em Brasília e Goiás.

Segundo a Polícia Federal, 20 funcionários das cinco embaixadas, incluídos diplomatas, participaram do esquema. O ¿Jornal Nacional¿, da TV Globo, informou que as representações estrangeiras eram de Angola, Congo, Senegal, Gabão, Síria e Iraque. A PF pouco pode fazer contra os estrangeiros do corpo diplomático, que gozam de imunidade penal no Brasil. O Itamaraty pedirá aos governos dos países que tomem providências em relação aos funcionários.

Notas exageradas deram o alerta

Segundo Lúcia Corrêa Leal, inspetora da Alfândega do Aeroporto de Brasília, a PF acredita que pelo menos um diplomata brasileiro, que ocupa o posto de terceiro secretário e é ligado à Coordenação Geral de Privilégios e Imunidades do Itamaraty, pode estar envolvido. Hamilton, o servidor preso, trabalha nesse setor, onde são emitidas as notas autorizando as embaixadas a adquirir produtos na Brasif.

Além de Hamilton, foram presos três contrabandistas ¿ Ângela Rodrigues, Alzair de Aquino e Zuhair Murdashi ¿ e dois funcionários da Brasif ¿ Jonas da Silva Garcez e Manoel da Costa. Os seis vão responder por formação de quadrilha, contrabando, corrupção passiva e corrupção ativa e podem pegar até dez anos de cadeia. Todos estão presos na Superintendência da Polícia Federal em Brasília.

Nas investigações, a Receita e a PF detectaram um acréscimo exagerado no volume de mercadorias compradas pelas cinco embaixadas. Uma pequena embaixada africana chegou a comprar 900 litros de uísque em um mês, quando o consumo médio de uma embaixada maior é de 90. Só no período acompanhado pela PF, as vendas chegaram a US$500 mil e US$100 mil em impostos deixaram de ser recolhidos.

Em dez meses, as cinco embaixadas compraram 25 mil garrafas de uísque. Na residência de um dos contrabandistas foram encontrados mil vidros de perfume vendidos a R$300 cada um. Segundo a PF, uma garrafa de uísque era comprada a US$9 (cerca de R$19) e vendida a R$45. A clientela dos contrabandistas era formada por altos funcionários públicos, empresários e políticos de Distrito Federal e Goiás.

A contrabandista Ângela Rodrigues é muito conhecida nos corredores dos ministérios, do Congresso Nacional e de outras repartições públicas em Brasília. Para justificar a venda a preços mais baixos que o mercado, ela dizia que era mulher de um funcionário da Brasif, na loja do free shop do Aeroporto de Brasília.

As investigações começaram no início de 2005. Para chegar aos responsáveis, os agentes filmaram suas ações. Uma das gravações mostra Hamilton recebendo duas caixas de uísque como pagamento por serviço que prestara à quadrilha.

Importação elevada de uísque e perfume

Segundo o delegado da Polícia Federal Paulo Moreira, que comandou a operação, os contrabandistas vendiam os produtos no ¿boca a boca¿, em contatos com amigos e conhecidos de outros compradores. Os funcionários da Brasif recebiam comissão da venda dos produtos, e não propina dos contrabandistas. O superintendente da Receita Federal no Distrito Federal, Newton Tadeu Nogueira, disse que os primeiros indícios de irregularidades foram detectadas por servidores da Alfândega no aeroporto de Brasília, que desconfiaram da importação acima da média de alguns produtos, principalmente uísque e perfume.

¿ Foi o que chamou a atenção dos funcionários e o que deu início à operação ¿ disse Nogueira.

A Brasif divulgou nota informando que todas as suas operações comerciais nas lojas francas são realizadas dentro das normas legais e sob a estrita fiscalização da Receita Federal, ¿que tem pleno acesso a todos seus terminais de venda¿. Segundo a Brasif, a loja que atende ao corpo diplomático em Brasília funciona na presença permanente de um fiscal da Receita Federal.

¿A direção da empresa aguarda a conclusão das investigações, colaborando com as autoridades na busca do completo e total esclarecimento do assunto. Se confirmado o envolvimento de qualquer de seus funcionários, a empresa adotará todas as medidas legais e administrativas cabíveis¿, diz a nota.

O Itamaraty também divulgou nota afirmando ter tomado conhecimento das investigações ontem. De acordo com o comunicado, o Ministério das Relações Exteriores determinou providências para que as denúncias sejam rigorosamente apuradas, incluindo a colaboração com a Polícia Federal e a Receita Federal.

¿O Itamaraty manterá estreita cooperação com as autoridades policiais e tributárias, de modo a assegurar a identificação de eventuais desvios na aplicação dos privilégios concedidos em conformidade com a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas¿, diz a nota.