Título: FOME POLÍTICA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 22/12/2004, O País, p. 4

Poucas vezes um presidente teve a chance de consertar um erro como Lula está tendo com a pesquisa do IBGE que mostrou que não há problema de fome no Brasil na dimensão que o PT na oposição apontava. O programa Fome Zero nasceu de boas intenções e acabou se transformando em uma peça de marketing político, de efeito internacional. Mesmo, porém, que apresente em sua origem uma preocupação social louvável, o Fome Zero não deixa de ser um programa baseado em uma falácia criada pela oposição nos últimos 10, 20 anos. O próprio Lula sabe, e fala disso com convicção, no documentário ¿Entreatos¿, de João Moreira Salles, que está em exibição nos cinemas.

Depois de questionar diversos números que habitam o imaginário dos discursos políticos de oposição há anos ¿ 5 milhões de mulheres mortas por aborto; 25 milhões de crianças de rua ¿ Lula pergunta ao hoje chefe de gabinete, Gilberto Carvalho: ¿Quantas pessoas passam fome neste país, Gilberto? Eu acho o número de 53 milhões tão absurdo¿. Mas conclui que, embora pareçam absurdos, ¿os números são do IBGE.¿

Pois bem: o mesmo IBGE que o então candidato citou como fonte inquestionável mostra em sua Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) que não existem os tais 53 milhões de famintos no Brasil. Realizada em um ano, através de mil pesquisadores que mediram e pesaram os adultos com 20 anos ou mais de idade de 48,5 mil famílias de todo o país, a POF custou R$12 milhões aos cofres públicos.

Dinheiro que o presidente teria jogado no lixo, junto com a reputação de um dos mais respeitados órgãos públicos brasileiros, se fossem críveis seus argumentos para tentar desqualificar a pesquisa que transformou em pó o carro-chefe do projeto social do governo.

O resultado da pesquisa é inequívoco: segundo o IBGE, ¿num universo de 95,5 milhões de pessoas de 20 anos ou mais de idade, há 3,8 milhões de pessoas (4%) com déficit de peso e 38,8 milhões (40,6%) com excesso de peso, das quais 10,5 milhões são consideradas obesas¿.

O diagnóstico é claro: ¿A população adulta brasileira, quando observada no seu todo, não está exposta aos riscos de desnutrição, sendo a taxa de 4% compatível com os padrões internacionais, uma proporção esperada de indivíduos que são constitucionalmente magros¿, pois taxas entre 3% e 5% ¿são encontradas em todas as populações não expostas a deficiências nutricionais¿.

Segundo os técnicos do IBGE, o risco de desnutrição, ¿quando observado, se caracterizou como baixo, correspondendo a proporções de déficits de peso entre 5 e 10%¿. As classificações internacionais consideram que taxas entre 5% e 10% configuram baixa exposição à desnutrição; entre 10% e 20%, moderada; entre 20% e 30%, alta e, acima de 30%, muito alta exposição à desnutrição. Portanto, se existissem mesmo os tais 53 milhões de famintos, o Brasil seria um país com ¿alta¿ exposição à desnutrição, o que simplesmente não corresponde à verdade.

Não existe nada próximo a esse alarde que o governo faz, nem mesmo nas regiões mais pobres do país. Segundo o IBGE, os casos mais graves, com o déficit de peso igual ou superior a 5%, são registrados para homens com mais de 74 anos de idade (8,9%) e mulheres com menos de 30 anos (12,2% entre as 20 e 24 anos e 7,3% entre 25 e 29 anos). Entre os homens adultos, ¿em geral, o déficit de peso é sempre inferior a 5% em todas as regiões do país, variando de 2% no Sul a 3,5% no Nordeste, sendo ligeiramente maior no meio rural, ainda que, em nenhum caso, supere os 5%¿.

Na população feminina, as taxas variam de 3,7% no Sul a 6,2% no Nordeste e Centro-Oeste. No meio rural, alcança 3,6% no Sul e é de 5,1% no Norte. Nas áreas rurais do Nordeste, a prevalência de déficit de peso alcança 7,2 das mulheres adultas, no Sudeste, 6,2 % e no Centro-Oeste, 6,3%, ¿indicando, nos três casos, baixa exposição à desnutrição¿. Como é óbvio, o déficit de peso diminui entre homens e mulheres ¿à medida que os rendimentos aumentam¿.

A pesquisa mostra que a situação do país é melhor do que o PT sempre apregoou. Pois para o presidente Lula, por ignorância ou má-fé política, o IBGE é igual ao Ibope, ao Datafolha, ao Vox Populi, institutos de pesquisa de opinião. ¿Não adianta sair por aí perguntando porque quem tem fome tem vergonha de admitir. E, às vezes, nem mesmo sabe que tem fome¿, afirma Lula, com a segurança de quem já passou fome, como gosta de sublinhar.

Na hipótese mais otimista, de que o improviso seja produto de mero desconhecimento, é preocupante que o presidente, antes de falar sobre um assunto, não se informe. A pior hipótese é que ele, mesmo sabendo da verdade, insista em inflar o número dos que têm fome porque essa tem sido uma tática que vem dando certo desde os tempos de oposição, e hoje tem sucesso internacional.

É claro que não é aceitável que exista ao menos uma pessoa que passe fome, quanto mais 4 milhões, ou mesmo o dobro disso se ampliarmos a abrangência da pesquisa do IBGE. Como ela foi acompanhada pelo Ministério da Saúde, o governo tem um instrumento valioso para redirecionar suas fracassadas políticas sociais, e dividir a destinação do curto dinheiro público com outras áreas também carentes, como a educação ou a saúde.

Insistindo no erro, estará dando uma indicação de que o Fome Zero não passa mesmo de um slogan político, e o Bolsa Família, sem o mínimo controle das contrapartidas educacionais e de saúde, e controlada pelas prefeituras, nada mais é do que a formação de grandes cadastros para controle de currais eleitorais nos grotões brasileiros.