Título: Rota de colisão
Autor: PAULO THIAGO
Fonte: O Globo, 08/12/2004, Opinião, p. 7

A indústria cultural, exercendo enorme poder sobre a sociedade, integra o imaginário e o simbólico do tecido político e atinge, portanto, os fundamentos da cidadania. Suas ações e correlação de forças são essenciais para superar os problemas do desenvolvimento, da segurança, da violência e da inclusão social. Apesar de existirem numerosas culturas dispersas mundo afora, há uma indústria cultural que é planetária e hegemônica.

O fortalecimento da Agência Nacional de Cinema (Ancine), com sua ação para promover uma política de proteção para o cinema no país, como a sua transformação em Ancinav no sentido do fomento e incentivo do conteúdo nacional, é sem dúvida necessária. Esta defesa é essencial nas telinhas (que atingem 102 milhões de pessoas todos os dias) e nas telonas que definem a ponta das novas idéias e criações, atingindo agressivamente a juventude e a classe média.

O projeto do Minc para a Ancinav foi formulado durante oito meses em ¿segredo de Estado¿. O texto não era do conhecimento nem do comitê cultural do PT. Vazando antecipadamente, provocou reações contrárias que explodiram na mídia, esquentadas por algumas manifestações de apoio.

Criou-se o contencioso e só depois começaram as negociações por intermédio dos representantes no comitê da sociedade civil do Conselho de Cinema e em outras reuniões paralelas explosivas com os setores discordantes.

Quem são estes setores? É a indústria audiovisual nacional que movimenta bilhões de reais e emprega mais de 150.000 funcionários. São os exibidores (nacionais e estrangeiros), os distribuidores (nacionais e estrangeiros), a infra-estrutura técnica (laboratórios e proprietários dos equipamentos de filmagem e gravação), as televisões abertas e fechadas e os produtores de cinema que detêm 88% das receitas dos filmes brasileiros lançados no mercado de salas e vídeo nos dois últimos anos, representados pelo Sicav, do Rio de Janeiro, e o Sicesp, de São Paulo.

As entidades destes segmentos se organizaram em um fórum coletivo e se desligaram do chamado CBC (Congresso Brasileiro de Cinema), que se arvorava em falar em nome do cinema como um todo, e que em 2003 era violentamente contra a ida da Ancine para o Minc, mas agora apóia incondicionalmente o projeto.

Porém os objetivos do fórum não se limitam às questões da Ancinav, como deu a entender parte da imprensa. O fórum é algo inovador no seio da comunidade, integrando as diversas áreas da cadeia produtiva, que historicamente sempre se conflitaram como adversárias e agora se integram. É um marco nos novos tempos do audiovisual no país.

Já afirmava 100 anos antes da era cristã o general chinês Sun Tzu em seu clássico ¿Arte da guerra¿: ¿Se teus inimigos forem muito poderosos e fortes, não os ataques. Evita cuidadosamente o que pode redundar num conflito generalizado.¿ Nada disso parece que foi refletido pelos técnicos do Minc e caminhamos celeremente para uma batalha ¿ no conselho superior com a presença dos ministros; no Conselho Nacional de Desenvolvimento; nas decisões internas finais do governo; e, então, se o projeto for enviado ao Congresso mesmo com o recente texto votado pelo comitê (sem superar as divergências), será entre os deputados e senadores, onde estão presentes os defensores dos maiores veículos de comunicação do país e das teles, principais afetados pela idéia. Depois, finalmente, nos tribunais.

Tudo isto em 2005, ano pré-eleitoral do presidente Lula. O bom senso manda que seja evitado. Além de sua inoportuna tática de condução política, o projeto original contém na nossa visão alguns erros estruturais: é concentrador (decisões de forte teor normativo e fomentador ¿ calculava-se cerca de R$ 350 milhões ¿-na mão apenas de três diretores); cria inúmeras taxas (punitivo) e, não propositivo, formulando novos incentivos; extremamente abrangente, tentando açambarcar cinema, televisões, telefonia etc., como se fosse possível colocar agentes econômicos tão díspares em importância numa agência com superpoderes legislativos.

Esta Ancinav idealizada seria verdadeira ¿revolução¿, muito de acordo com pensamentos ideológicos dos anos 60 ou as ações estatistas dos anos 70 dos governos militares nacionalistas (era Geisel). Um verdadeiro Ministério do Lazer. Tem origem clara na lógica da esquerda durante a guerra fria. Se a legislação deve avançar, é um absurdo criar leis contestadas por mandados de segurança¿ a serem engavetadas.

Não é este, como entendo, o DNA do governo Lula, em busca de acordos na sociedade. Acredito nas boas intenções dos dirigentes do Minc, mas é democrático divergir da sua condução política e dos princípios adotados no projeto.

A categoria do audiovisual está dividida, o conflito estabelecido, os ânimos exaltados. Manifestações políticas radicais, como dos meus bons tempos de movimento estudantil, explodem nos festivais, dividindo colegas que privam no fundo dos mesmos problemas para produzir cinema no país.

Sem unidade não convenceremos a sociedade, os altos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário da República. Penso que ainda é tempo de evitar incêndios e essa desgastante, desnecessária, rota de colisão. PAULO THIAGO é presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica do Audiovisual