Título: O DIREITO AO ABORTO
Autor: THOMAZ RAFAEL GOLLOP e LIA ZANOTTA MACHADO
Fonte: O Globo, 24/10/2005, Opinião, p. 7

O recurso à interrupção voluntária da gravidez deve ser entendido como uma última etapa, frustradas as estratégias que o previnam. Entretanto, a gravidez indesejada ocorre e deve ser tratada como questão de saúde pública.

O fato de o aborto ser crime no Código Penal brasileiro vigente, datado de 1940, não só é ineficaz como é prejudicial aos interesses da população, pois acarreta riscos para a saúde e para a vida das mulheres.

No Brasil mais de um milhão de abortamentos clandestinos são realizados todos os anos. Dados do Ministério da Saúde apontam que 240 mil internações são realizadas na rede do Sistema Único de Saúde, com custo anual de trinta milhões de reais, em conseqüência de abortamentos inseguros. Não estão aí computadas seqüelas tardias como a esterilidade.

A criminalização do aborto transforma a interrupção da gravidez em clandestinidade, induz a procedimentos inseguros e ceifa a vida de muitas mulheres. É responsável pela quarta causa de mortalidade materna.

Julgar o abortamento como pecado está vinculado à fé. A fé é de domínio privado e, necessariamente, deve ser respeitada. Um Estado laico, como o Brasil, deve respeitar todas as religiões, incluindo-se o direito de não professar nenhuma. Mas deve se abster de permitir a interferência de instituições religiosas em decisões de cunho executivo ou legislativo. O direito de decidir é sempre de foro íntimo.

O trabalho da Comissão Tripartite para a revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez, instalada pela Secretaria Especial das Políticas para as Mulheres, procurou atender aos anseios das brasileiras. O anteprojeto prevê a retirada do Código Penal dos artigos que tratam do crime de aborto. Esses princípios deverão ser apreciados pela Comissão de Seguridade Social e Família. Trata-se de uma demanda das Conferências nacional, estaduais e municipais, em 2004, de mais de 120 mil mulheres.

A minuta de projeto de lei da Comissão se baseia no princípio de que a maternidade é um direito e não uma obrigação. A proposta é profundamente ética. Está fundada na eqüidade de direitos entre mulheres e homens e na justiça social. Reconhece a iniqüidade dos resultados da criminalização do aborto. A obrigação de levar adiante uma gravidez sob qualquer circunstância é desumana.

Como pensar que mulheres violentadas, mulheres com graves problemas de saúde, mulheres que se deparam com malformações congênitas como a anencefalia devam obrigatoriamente levar adiante a gravidez? Deverão preferir enfrentar os riscos do abortamento inseguro, e muitas vezes sua vida, para não ir adiante naquela gravidez indesejada?

Dois mitos estão sendo divulgados sobre a proposta de legalização do aborto. Um deles é o temor de que a legalização faria dele um evento banal, rotineiro e generalizado. O segundo é que o projeto não estabelece limites ou regras para o seu acesso legal .

A proposta está embasada no conhecimento dos efeitos da legalização do aborto em diversos países. Nos países que legalizaram o aborto e realizaram uma política de acesso a métodos anticoncepcionais, caíram drasticamente as taxas de mortalidade materna e as de abortamento. Neles foi reiterada a constitucionalidade do direito à interrupção da gravidez como coerente com o direito em geral à vida, pois que o direito abstrato da vida não é absoluto. Sem qualificativos e ponderações, contradiz o direito à vida das mulheres e os seus direitos sexuais, reprodutivos e de saúde. Onde não houve a ampliação do acesso aos métodos anticoncepcionais, as taxas de abortamento se mantiveram, mas a mortalidade materna caiu drasticamente.

A proposta garante o acesso à interrupção da gravidez na rede pública e nos planos privados de saúde, mas o limita às doze primeiras semanas de gravidez. É o período incipiente da gestação ¿ e de menor risco à saúde das mulheres. Este prazo só pode ser ultrapassado nas condições de risco grave à saúde das mulheres ou de malformação congênita incompatível com a vida ou de graves e incuráveis doenças fetais. Nos casos de gravidez decorrente de violência sexual, o prazo é o das vinte primeiras semanas.

Quando a interrupção voluntária da gravidez for legalizada nas normas previstas, a decisão de assumir ou não paternidade e maternidade será uma decisão de afeto e responsabilidade e não uma imposição do Estado.

THOMAZ RAFAEL GOLLOP é diretor do Instituto de Medicina Fetal de São Paulo e integrante da Comissão Tripartite para a revisão da legislação punitiva sobre o aborto por indicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). LIA ZANOTTA MACHADO é professora de Antropologia da Universidade de Brasília e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher.