Título: CÂMARA SOB PRESSÃO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 07/10/2005, O País, p. 4

Nos próximos dias, teremos a rara oportunidade de assistir a manobras definidoras do caráter das relações políticas que regem a Câmara, seus integrantes, e a opinião pública, que mais uma vez jogará papel decisivo nas decisões a serem tomadas. A Mesa da Câmara vai ter sua prova de fogo na análise do processo de 13 dos deputados acusados de envolvimento nos escândalos de corrupção, e revelará se a eleição de Aldo Rebelo deu-lhe um contorno mais democrático e menos dependente do corporativismo que reinava na era Severino, ou se o espírito do baixo clero continua a dominar suas decisões, como quase ficou provado na Corregedoria.

Foi preciso que o receio da reação da sociedade civil fosse maior que a pressão dos seus pares para que a Corregedoria, por uma margem mínima, garantisse o pedido de cassação de mandatos de todos os envolvidos, em vez de livrar a cara liminarmente de alguns deles. As pressões exercidas pessoalmente por quase todos os acusados se transferirão agora para a Mesa da Câmara, que mantém a mesma formação anterior.

Caberá ao deputado Aldo Rebelo fazer com que não mantenha o mesmo espírito corporativo, nem deixar que se curve à pressão do Palácio do Planalto para livrar petistas do julgamento do Conselho de Ética. Até terça-feira, quando presumivelmente será dada a palavra final, é provável que muitos desses acusados decidam renunciar, para não se submeterem ao julgamento do plenário, mas, principalmente, para manterem a condição de se candidatar nas próximas eleições.

A manobra está sendo incentivada pelo Palácio do Planalto, que pretende encurtar o processo de seu desgaste político. Quanto menos deputados do PT e da base aliada estiverem sendo julgados pelo Conselho de Ética, melhor para o governo, raciocinam seus articuladores políticos, sem levar em conta os aspectos éticos e morais da situação. Uma das conseqüências dessa crise será mais uma mudança do regimento interno da Câmara, para impedir que a renúncia evite o prosseguimento de processos de cassação.

A renúncia do ex-chefe da Casa Civil José Dirceu chegou a ser sugerida a ele por enviados do Palácio do Planalto, mas até aí não vai a lealdade de Dirceu, que joga seu futuro apoiado em sua história política. Mostra-se um lutador merecedor de respeito, mesmo dos que não concordam com suas idéias e métodos de atuação, que são os verdadeiros responsáveis pelo seu julgamento.

Dirceu não mente quando alega que não se encontrou nada diretamente contra ele, embora o nome de um assessor seu tenha entrado e saído misteriosamente da lista de sacadores de Marcos Valério, favores a uma ex-mulher tenham sido feitos e audiências concedidas à diretoria do Banco Rural a pedido de Valério tenham sido realizadas.

De qualquer maneira, Dirceu está sendo julgado pelas "responsabilidades políticas" que já admitiu ter, e o julgamento da Câmara é mesmo político. Quando era o todo-poderoso da República, Dirceu nunca recusou o epíteto de cérebro político do governo, nem a autoria da estratégia de inchar os partidos da base aliada desidratando os partidos de oposição.

E nem negou quando se dizia que era ele quem manobrava entradas e saídas de políticos deste para aquele partidos, ou a predominância de um partido sobre o outro, conforme o interesse momentâneo do Palácio do Planalto. Só quando ficou claro, com as denúncias de Roberto Jefferson, que essas manobras estratégicas eram estimuladas à base do saque na boca do caixa do Banco Rural, José Dirceu eximiu-se de responsabilidade.

A tentativa de fazer com que o Supremo Tribunal Federal cancele o processo que já corre contra ele no Conselho de Ética é, de seu ponto de vista, inteligente, pois não existe qualquer precedente de deputado cassado por quebra de decoro parlamentar quando, no dizer de seus advogados, não exercia o mandato. Aliás, a discussão é exatamente essa, saber se um deputado em posição no Executivo deixa de ser deputado. Há maneiras e maneiras de lidar com a situação.

Na cassação de Luiz Estevão, o Senado encontrou uma maneira de "contornar" a questão: o parecer do relator diz que ele mentiu na Comissão, ao negar que tenha praticado os crimes de que era acusado, mentira que caracterizaria a quebra de decoro parlamentar. Caso haja a tão famosa "vontade política", o Conselho de Ética da Câmara pode, também, afirmar que Dirceu mentiu no seu depoimento, já na qualidade de deputado, ao negar o caixa dois do PT ou a existência do mensalão.

Já o deputado Talvane Albuquerque foi cassado por atos praticados na legislatura anterior. Como o dinheiro do valerioduto foi distribuído a partir da campanha de 2002, período em que Dirceu era deputado federal e coordenador da campanha de Lula, os atos teriam sido praticados no exercício do seu mandato anterior, mesmo que vingue a tese de que, como ministro, ele não pode ser cassado por quebra de decoro parlamentar. Mas mesmo esta tese já tem argumentos fortes contra ela, embora não exista uma decisão do Supremo.

Nessa questão de deputado ou senador poder exercer o cargo de ministro de Estado, há um trabalho do jurista Pontes de Miranda que mostra que na República brasileira "admitiu-se o que era peculiar ao regime parlamentar". Nos Estados Unidos, os membros do Poder Legislativo não podem ser ministros de Estado. Nos Estados parlamentaristas, sim.

Ele ressalta que somente após a Revolução de 1930 "foi que se feriu o Congresso Nacional com a permissão de senadores e deputados reduzidos a ministros de Estado". Antes, o deputado ou senador tinha de renunciar ao mandato para assumir o ministério.

O jurista afirma que "ministro de Estado que é deputado, ou senador, fica, praticamente, um tanto protegido, politicamente, pelo Poder Legislativo, ao mesmo tempo em que se torna intermediário, subalterno, do presidente da República".