Título: A AMAZÔNIA TEM DONO
Autor: ROBERTO S. WAACK
Fonte: O Globo, 02/07/2005, Opinião, p. 7

A sociedade tem abordado a questão amazônica de forma maniqueísta. De um lado, uma visão catastrófica tratando estaticamente os efeitos da devastação - uma foto dos fatos -- de outro, uma abordagem romântica da vida das comunidades e das iniciativas dos milhares de projetos em desenvolvimento na região. As queimadas e os colares artesanais, as matanças e os "remédios" populares, a agroindústria "predatória" e a riqueza da biodiversidade. É preciso evidenciar o que realmente está por trás da triste situação a que está exposta a maior área verde do planeta. Além da catástrofe da devastação, a desgraça da desinformação e a irresponsabilidade da ausência das instituições.

Sim, a Amazônia tem dono. Ela é ocupada por um conluio perverso dos madeireiros ilegais com a oligarquia política. Surpreendentemente, esta orquestra ganhou o apoio, mesmo que indireto, de movimentos radicais que buscam a ocupação das terras a qualquer custo. "Os fins que justificam os meios" comprometem a conservação da floresta aceitando apoio financeiro de madeireiros e grileiros de terra em nome de associações profissionais (itinerantes!) de posseiros. As terras são ocupadas por populações desassistidas, a floresta é devastada e transformada em pastos precários.

Os naipes desta sinfônica são reforçados por burocratas catatônicos e por grupos de agentes públicos que vivem da venda de facilidades. Por mais incrível que possa parecer, um timbre adicional desta sinfonia nefasta tem vindo de ambientalistas radicais que se voltam contra qualquer iniciativa produtiva na Amazônia, ignorando o fato de que mais de 20 milhões de pessoas nela habitam. Indiretamente, acabam por favorecer as atividades ilícitas. No lugar de uma floresta produtiva, a devastação total. Incompreensível. (Sem exclamação.)

Esta situação precisa ser conhecida e esmiuçada em seus mínimos detalhes. Os principais agentes deste processo são facilmente identificáveis e não resistem à menor investigação jornalística, para não ter que adicionar - já o fazendo -- uma crítica à ação tímida do sistema judiciário no processo.

A prática predatória dos madeireiros ilegais se estende quando levantam a bandeira do questionamento irresponsável da legalidade das posses de terra, criando uma grande desordem ao instigar as comunidades locais com os mais diversos interesses.

A inépcia e estratégica apatia dos poderes administrativo e judiciário envolvidos com a questão fundiária são de pleno conhecimento da sociedade brasileira. Tal situação abre flanco para a disputa das áreas. Criada a confusão, os posseiros profissionais se instalam até a derrubada e queima de todas as árvores, não restando, após a ação, quaisquer condições de sobrevivência para as comunidades. Migrantes, elas seguem para uma nova fronteira, e a terra arrasada fica à disposição dos fazendeiros interessados na pecuária e no plantio de grãos. A partir daí, tudo se repete.

A atuação desses profissionais Ö madeireiros e posseiros Ö é favorecida tanto pela oligarquia política, que é financiada pelos madeireiros, quanto pelos radicais de esquerda que, por uma questão ideológica, estimulam as ocupações ao mesmo tempo em que convivem com a depredação das matas.

Para eles, a perda da floresta é um "mal menor". Tudo isto ocorre graças à ausência ou inadequação de um ambiente institucional que assuma a regência desta orquestra. Os grupos de instrumentos reunidos no salão amazônico tocam seus próprios interesses, mesmo os mais nobres, sem assumir qualquer responsabilidade pelo produto final.

Para que nossos ouvidos parem de ser agredidos com as más notícias ambientais e, especialmente, nossos pulmões sobrevivam, é preciso um maestro que elimine os ilegais, treine e aceite uma transição para vários agentes sociais e produtivos tradicionais e fortaleça aqueles que buscam genuinamente o desenvolvimento sustentável na região.

Além de promover o respeito às instituições, que na Amazônia são precariamente consideradas, o desafio do Estado é criar uma política que leve em conta a cultura dos ribeirinhos, dos extrativistas, das comunidades tradicionais, dos produtores rurais já instalados e das novas iniciativas empresariais que estão surgindo.

Como organizar esta sociedade múltipla e complexa? Quais os desenhos de organização que a região deve ter? Como abordar o seu relacionamento com o mundo econômico? Que arquiteturas financeiras devem ser disponibilizadas pelos bancos comprometidos com o desenvolvimento da região? Como monitorar a evolução desse caldeirão de oportunidades e desafios? Na prática as respostas se concentram em um esforço para o desenho de novos arranjos institucionais que, especialmente - assim como as leis vigentes - sejam cumpridos e respeitados.

Pois é, a Amazônia tem dono. Pertence à sociedade que se preocupa com a região de forma consistente e verdadeira, sem interesses escusos ou "peles de cordeiros". Pertence à sociedade que souber construir e seguir as regras do jogo institucional, voltado para a criação de um ambiente propício ao desenvolvimento sustentável real -- não o retórico . É preciso ir fundo na compreensão do que está por trás das más notícias. É preciso não se iludir com o romantismo da biodiversidade e da vida "onírica" das comunidades. A Amazônia está acabando por falta e pelo não cumprimento de leis específicas à sua realidade.

ROBERTO S. WAACK é presidente da Orsa Florestal.

Há um conluio perverso dos madeireiros ilegais com a oligarquia política