Título: BABEL LEGISLATIVA
Autor: ANDREA GOUVÊA VIEIRA
Fonte: O Globo, 16/06/2005, Opinião, p. 7

Há poucos dias os vereadores do Rio se defrontaram com uma situação curiosa: dois projetos de lei aprovados na Câmara voltaram do Executivo. Um, de vereador do partido do prefeito, sancionado; outro, da oposição, vetado. Idênticos, autorizavam a construção de vilas olímpicas em redutos eleitorais de dois vereadores. Apesar de serem ambos inconstitucionais, o prefeito Cesar Maia tratou o assunto de acordo com suas conveniências políticas. Atuando dessa forma, desrespeitou a Lei Orgânica e alimentou, mais uma vez, a babel legislativa que se tornou a Câmara de Vereadores.

Existem hoje no Rio 4.646 leis municipais. Somente nos 3 primeiros meses de 2005, mais de 200 leis foram aprovadas, a maioria sem nenhum valor legal, o que explica a tramitação de mais de 250 ações contra leis municipais consideradas inconstitucionais, congestionando ainda mais o Judiciário.

É muito comum avaliar a qualidade da atuação legislativa pela quantidade de projetos apresentados. A imprensa reforça a idéia quando destaca este viés. E o vereador apresenta sua produção como um ativo em ano eleitoral. Trata-se de um equívoco. Por mais desejáveis e meritórios que sejam, projetos de lei de vereador autorizando o prefeito a fazer alguma coisa são simplesmente ilegais, segundo entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, e viram instrumentos para enganar o eleitor.

Recentemente, a prefeitura e a Câmara de São Paulo firmaram convênio para enxugar a legislação local, num grande projeto de consolidação das leis existentes. É um avanço a ser seguido no Rio, como um primeiro passo no longo caminho contra leis inúteis para a população. O vereador Stepan Nercessian vem questionando oficialmente o volume de leis municipais não cumpridas e uma comissão especial liderada pelo vereador Edson Santos começa a trabalhar neste sentido.

Enquanto perde tempo e dinheiro aprovando o que não será cumprido, o vereador deixa de focar sua atuação naquilo que realmente é a sua função: examinar detalhadamente as propostas do Executivo antes de votá-las, propor e acompanhar a execução do orçamento.

Hoje, a legalidade do trabalho legislativo no Rio está comprometida pela existência de um dispositivo no Regimento Interno que permite a formação de blocos parlamentares individuais, não partidários. Vereadores de um mesmo partido se compõem em blocos diferentes e abrem mão da representação com que se elegeram. Além de inconstitucional, segundo parecer do jurista Célio Borja, este dispositivo abre caminho para que o interesse particular se sobreponha ao público.

Projeto do vereador Brizola Neto, com 21 co-autores, eliminando esta distorção, entrou em pauta em sessão extraordinária, mas foi retirado por emenda do vereador Jorge Pereira, acompanhado por outros 18 vereadores, inclusive o vereador Paulo Cerri, líder do governo, o que causa estranheza já que o prefeito Cesar Maia tem-se manifestado reiteradamente a favor da reforma política .

Cabe, igualmente, numa perspectiva geral, cobrar do Executivo instrumentos que dêem transparência aos gastos da prefeitura. Em 2004, a Câmara deu ao prefeito um cheque em branco de cerca de R$3 bilhões para remanejar o Orçamento. O sistema disponibilizado aos vereadores para acompanhamento desses gastos é ultrapassado e pouco amigável, alvo de inúmeros questionamentos pela Comissão de Orçamento, presidida pela vereadora Rosa Fernandes.

Um sistema adequado, como o Siafi, entregue ao Congresso Nacional, evitaria surpresas como a crise que atingiu a Saúde do município. Agora mesmo, quando se discute no Rio a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2006, não se sabe onde estão alocados os recursos - cerca de 500 milhões de reais - para as obras necessárias à realização dos Jogos Pan-Americanos.

Por fim, numa questão de técnica legislativa, é preciso suprimir o parágrafo 2º do art. 71 da Lei Orgânica, que concede ao prefeito a prerrogativa de sancionar projetos inconstitucionais, com vício de iniciativa, fazendo uso político do seu dever de apreciar tecnicamente a constitucionalidade das propostas dos diferentes vereadores, aliados seus ou não.

Para o cidadão, indignado com a qualidade de vida da cidade e com a falta de transparência das atividades parlamentares, esta é uma pauta a ser discutida com os vereadores em quem votaram.

ANDREA GOUVÊA VIEIRA é vereadora (PSDB-RJ).

No Rio, vereadores de um mesmo partido compõem blocos diferentes na hora de votar