Título: BRASIL PRECISA ACEITAR QUE O RACISMO EXISTE
Autor: AZUETE FOGAÇA
Fonte: O Globo, 22/04/2005, Opinião, p. 7

Por pura obra do acaso, a questão racial esteve no noticiário nesta última semana, em três situações diferentes: o pedido de perdão do presidente Lula aos africanos, por conta da escravidão no Brasil; a prisão do jogador argentino que ofendeu um jogador brasileiro negro; e a inclusão, no Censo Escolar do Ministério da Educação, da identificação dos alunos pela cor. As reações a estes fatos dividiram-se, como sempre entre prós e contras, fato natural em uma sociedade democrática. Entretanto, o que se observa das críticas contrárias é que elas se apóiam, inicialmente, na naturalização de certos termos aplicados comumente aos negros ¿ expressões como ¿neguinho¿, ou ¿negão¿, por exemplo ¿ porque já fazem parte do cotidiano e seriam ¿compreensíveis¿ em face do apelo emocional de um jogo de futebol. Significa dizer que o uso continuado de uma expressão pejorativa e racista faz com que ela deixe de sê-lo e se transforme num termo ¿cordial¿. E assim, no caso de Grafite, tanto a acusação feita pelo jogador quanto a ordem de prisão dada pelo delegado constituiriam um exagero. Aqui, só cabe parafrasear o presidente na visita à ¿Porta do Nunca Mais¿: não dá para falar de discriminação; tem que senti-la na pele, para saber o quanto dói.

As críticas ao Censo Escolar negam a existência de racismo no Brasil e consideram que explicitar quem é negro, pardo, etc. é atitude de incitação a um racismo que não temos, porque chama a atenção das crianças para as diferenças físicas e usa um já superado conceito de raça. Ora, o preconceito de cor não se extingue com a negação de diferenças que de fato existem, e nem com a superação científica de um conceito. Não falar das diferenças equivale a esconder a realidade; negar o racismo equivale a varrer a sujeira para debaixo do tapete. Ao contrário, o Censo do MEC pode detonar uma discussão que se faz necessária mesmo entre crianças, para que saibam que as diferenças existem, e embora não indiquem a classificação por raças, fazem parte da diversidade humana e não são determinantes de qualquer tipo de inferioridade. Logo, não são justificativas para qualquer preconceito.

Tivemos ainda a indignação dos que consideram que o Brasil não deve desculpas pela escravidão. É claro que se trata de uma atitude simbólica, tal como a do Papa João Paulo II em face do triste papel da Igreja Católica, de legitimação da escravidão negra. Ela não muda o passado mas, mostra, pela primeira vez no Brasil, algum interesse das autoridades constituídas em tratar da escravidão e das marcas que ela deixou na sociedade brasileira, sem esconder e nem procurar disfarçar uma realidade de preconceito e discriminação contra os negros que se mantém até hoje.

Apesar de termos uma legislação que considera a discriminação racial como crime, quando ela é flagrada, busca-se atenuantes ou justificativas para que a lei não seja aplicada, e quase se transforma o réu em vítima: o negro que denuncia a discriminação e exige punição está destilando seu racismo contra os não-negros; o delegado que acata a denúncia e cumpre a lei está querendo seus quinze minutos de fama. Esta é uma atitude extremamente grave porque desqualifica um instrumento importante para o reconhecimento da dignidade do negro, ainda que não seja a solução única e nem final para a promoção da igualdade racial.

O preconceito diz respeito a idéias formuladas a priori sobre as qualidades físicas, morais e intelectuais de indivíduos, e que conferem a esses indivíduos uma situação de inferioridade. Pela sua subjetividade, o preconceito é mais difícil de ser combatido e mais demorado para ser desconstruído. Entretanto, qualquer que seja a motivação ¿ raça, cor, origem, classe social ¿ o preconceito constitui um fator determinante da qualidade das relações entre aquele que se considera ¿superior¿ e aquele que é considerado ¿inferior¿. É nessas relações que o preconceito se revela, sob a forma de discriminação. Orientada pelo preconceito, a discriminação é a ação concreta, que vai desde a afirmação verbal da inferioridade ¿ os xingamentos, os tratamentos pejorativos ¿ até as situações de humilhação e as iniciativas no sentido de impedir ou dificultar a comprovação de que essa inferioridade é infundada. Assim, pela sua concretude e objetividade, a discriminação racial pode ser identificada e deve ser combatida, tanto em nome do respeito ao ser humano quanto pelos princípios democráticos que igualam negros e não-negros como cidadãos. Todavia, as críticas aos episódios recentes indicam que o caminho para o equacionamento da questão racial no Brasil tem algo em comum com o tratamento para o alcoolismo: o primeiro passo para a superação é aceitar que o problema existe.

AZUETE FOGAÇA é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro.