Título: Governar, construir, civilizar
Autor: Nogueira, Marco Aurélio
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2013, Espaço aberto, p. A2

Ano novo, vida nova. Se o dito vale para as pessoas, também vale para as cidades, especialmente quando elas entram em contato com novos prefeitos, eleitos na esteira de promessas e expectativas de mudança.

Por todo o País os prefeitos estão agora obrigados a tradu­zir suas diretrizes e seus planos de campanha em ações efetivas de governo. Não é diferente com São Paulo. Eleito de modo convincente em 2012, Fernan­do Haddad inicia sua gestão im­pulsionado pela adesão inicial de milhões de eleitores que o consagraram nas urnas. Há oti­mismo e boas razões para acre­ditar que algumas boas novida­des virão. Mas governar uma metrópole como São Paulo re­quer mais que recursos técni­cos e intelectuais, que Haddad seguramente possui. É como a travessia de um deserto desco­nhecido, em que a cada passo se faz necessário recompor as energias e projetar uma meta de chegada que não se sabe bem onde está nem quando se efeti­vará. A cidade é como um enig­ma que se repõe a cada instante.

O novo prefeito conta com uma equipe formada em sua pró­pria prancheta e integrada, na maioria, por quadros técnicos e políticos majoritariamente qualificados, aos quais se agrega­ram algumas dívidas partidárias e de campanha. A questão agora é caminhar. Na mesa de Haddad há uma agenda espetacular de problemas. O "muro da vergo­nha" que separa ricos e pobres - tema central da campanha elei­toral - é inequivocamente o maior deles. Desmarginalizar, integrar e aproximar são verbos que se articulam tanto com go­vernar de modo democrático e socialmente responsável quan­to com a disseminação de novos valores e comportamentos. Ou seja, é tarefa do prefeito e de seus gestores, mas também dos que vivem em São Paulo. Passa pela reeducação dos morado­res, pela eliminação da prepo­tência dos grandes interesses, pela superação do que há de pri­vatização e mau uso do espaço público, coisas que somente frutificarão se forem induzidas pe­lo vértice do poder municipal, pelas escolas, pela mídia e im­pregnarem a consciência cívica da coletividade.

O governo da cidade opera mediante grandes e pequenos gestos, mostra-se no longo e no curto prazo, precisa incidir na estrutura urbana e no chão da vida cotidiana, tratar o que é aparentemente menor como coisa séria. Uma via esburacada ou mal iluminada, uma parada de ônibus mal localizada, um semáforo quebrado, uma árvore sem poda ou uma praça abando­nada infernizam avida de muita gente. Podem até "prejudicar os negócios", esse mantra que tem sido repetido sempre que se precisa justificar alguma deci­são ou falta de decisão.

Há questões dilemáticas. Co­mo seus antecessores, Haddad herdou uma dívida que tem si­do considerada "impagável", por estar em patamares superio­res às receitas anuais. A Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe a Prefeitura de obter novos em­préstimos, impedindo-a de acompanhar o ritmo de expan­são dos investimentos públicos dos últimos anos. A dívida so­ma R$ 58 bilhões, a maior parte dela com a União. Terá de ser renegociada, ao mesmo tempo que a Prefeitura terá de conti­nuar gastando. Precisará encon­trar meios de incrementar suas receitas, o que não é nada fácil.

Também são dilemáticos os temas associados ao plano político, ao social e ao da comunica­ção pública. Com que partidos, vereadores e organizações políticas contará o prefeito para au­xiliá-lo? Qual o real poder de fo­go de seus aliados e de sua base de sustentação? Terá de fato o apoio da população, especial­mente daquela sua parcela a quem se pedirá algum sacrifí­cio? Conseguirá quebrar a resis­tência dos interesses que se sen­tirem prejudicados ou que acha­rem que não estarão a ganhar tanto quanto julgam merecer? Como trazer o conjunto dos mo­radores para a ocupação cívica da cidade, ou seja, para a conver­são dos espaços urbanos em am­bientes civilizados (e, portan­to, democráticos e compartilha­dos) de vida coletiva?

Governar São Paulo não é construir estradas, vias expres­sas ou obras suntuosas. Algo dis­so com certeza haverá, porque a cidade continua a atrair pes­soas, eventos, investimentos e precisa se ajustar fisicamente. O caso do centro histórico é em­blemático. Abandonado há dé­cadas, esvaziado, empobrecido e desqualificado em termos ar­quitetônicos e urbanísticos, o centro persiste "fora da cidade" mesmo após várias interven­ções públicas. Não é um ponto de referência que ajude a organi­zar a cidade e a cidadania ou lhes forneça parâmetros de con­vivência. Precisa de obras e de muita regulação para se tornar uma área em que se possa viver, sentir e apreciar a história e o patrimônio da cidade. Todos perderão sem sua arrumação e sua integração cívica.

Cidades existem para serem usufruídas, contempladas e fre­quentadas. Não são locais so­mente para o trabalho. Preci­sam ser belas, limpas, amigá­veis. Sujeira, barulho e má pavi­mentação, por exemplo, não combinam com elas. Parecem questões menores, mas não são. Pouquíssimos bairros pau­listanos exibem calçadas ade­quadas. Há falhas, desníveis e bloqueios em excesso. Bancas de jornal, automóveis, camelôs e ciclistas dificultam a circula­ção segura dos pedestres e enfeiam a paisagem.

Calçadas e pavimentação são atribuições do poder público e requerem sua ação e sua regula­ção permanentes. Mas são tam­bém bens a serem cuidados pe­los moradores. Não devería­mos necessitar de uma lei para que alguém preserve e respeite o que é comum. A cultura urba­na e a civilidade deveriam bas­tar e na falta delas tudo fica mui­to mais difícil.

Está aí um dos mais comple­xos obstáculos para o sucesso de qualquer administração. Um governar que não se combine nem se preocupe com a constru­ção de vida civilizada, que se concentre exclusivamente na gestão e na política miúda terá menos chances de fazer a dife­rença. Sem cidadãos ativos os governantes podem pouco.

* PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E DIRETOR DO INSTITU­TO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E RELA­ÇÕES INTERNACIONAIS DA UNESP