Título: O Brasil poderá sofrer contágio da crise pelo comércio
Autor: Landim, Raquel ; Fabio Alves
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/08/2011, Economia, p. B6

Ex-presidente do BC diz que a crise é menos grave que a de 2008 e a resposta do Brasil deve ser diferente, com maior preocupação em dar sinais de controle das contas públicas

Entrevista

Henrique Meirelles

Henrique Meirelles estava no comando do Banco Central em 2008, quando a quebra do Lehman Brothers interrompeu o crédito internacional e atingiu o Brasil em cheio. Ele diz que a crise hoje é bem diferente, com mais dificuldades para recuperar o crescimento global e possibilidade de recessão nos Estados Unidos, mas o problema ainda se restringe ao endividamento dos governos.

Na sua avaliação, não há uma contaminação do sistema financeiro, embora exista uma grande preocupação com os bancos, principalmente europeus. Por isso, a principal via de contágio para o Brasil hoje é o comércio, por meio de queda dos preços das commodities e da redução de demanda por produtos brasileiros no exterior. "Não há dúvida que o canal de transmissão é comercial. Mas, como em 2008, isso pode mudar a cada 24 horas."

Presidente mais longevo do BC, ocupando o cargo entre 2003 e 2010, Meirelles, que hoje é presidente do Conselho Público Olímpico, não quis responder perguntas sobre como a autoridade monetária deve agir nesse momento. Disse apenas que "não há dúvida" que a economia mundial hoje é mais "contracionista", mas que "a grande lição de 2008" é que o BC deve reagir "a situações reais e não ao que deveria ser". A seguir trechos da entrevista ao Estado.

Quais são as diferenças entre a crise atual e a de 2008?

Em 2008, tivemos uma crise de crédito, que foi provocada por uma alavancagem excessiva das famílias, das empresas e dos bancos nos EUA. O setor privado americano e de outros países europeus diminuiu gradualmente seu endividamento, mas foi substituído pelo aumento das dívidas estatais. Esse é o ambiente desta crise. Uma preocupação dos investidores com o endividamento público e programas de austeridade com toda a sua consequência contracionista. Paralelamente, uma preocupação de que, se houver problemas maiores na economia e nos bancos, os governos não poderiam mais intervir. É uma crise que sinaliza mais dificuldades de crescimento, mas não é como em 2008 depois da quebra do Lehman Brothers. Por enquanto, é um problema dos governos. As ações dos bancos caem, porque podem ser o canal de transmissão para a economia real.

Por que o mercado está tão preocupado com os bancos?

Os bancos americanos hoje, no geral, estão melhor capitalizados do que estavam em 2008. Aprenderam bastante com a crise. Ainda existe problemas, principalmente os herdados da crise hipotecária, mas não é da mesma dimensão. Também há processos judiciais que podem ameaçar essas instituições. Algumas dessas ações são grandes e podem prejudicar a rentabilidade futura dos bancos. Isso é que causa preocupação. Já na Europa, os bancos estão expostos aos governos de países problemáticos. Evidente que o Banco Central Europeu está atento. Não há sinais de alarme, mas sem dúvida existe uma preocupação. E 2008 mostra que as coisas podem acontecer numa velocidade incrível.

O senhor acredita em um duplo mergulho, em nova recessão, da economia americana?

Existe uma preocupação dos Estados Unidos entrarem em recessão e essa é a razão da instabilidade e do nervosismo dos mercados. O desemprego americano continua alto, as empresas não estão investindo. É uma economia com uma demanda privada fraca e com possibilidades limitadas de o governo fazer um estímulo fiscal maior.

O risco de crédito da dívida da França pode efetivamente ser rebaixado?

Sim, é possível. Mas tem uma série de componentes de julgamento subjetivo das agências de rating, cuja credibilidade está em jogo depois das críticas severas em 2008. É uma possibilidade, mas o cenário base da França não é esse.

Até pouco tempo, os emergentes estavam preocupados com a inflação. Com a desaceleração global, isso mudou?

A grande lição de 2008 é que a autoridade monetária deve reagir a situações reais e não ao que deveria ser. Em 2008, foram tomadas uma série de medidas no Brasil que restauraram a atividade rapidamente. Naquela época, faltava crédito e liquidez no mercado e houve uma crise nos derivativos de câmbio. O BC atuou diretamente nisso. Hoje temos que verificar como vai se desenrolar a situação. O BC tem que identificar situações reais e atacar problemas específicos.

Mas a preocupação com a inflação mudou de patamar hoje?

Não há dúvida que a tendência da economia mundial é hoje mais contracionista. Temos um cenário diferente do que há alguns meses, quando havia questões localizadas de preços de commodities. Temos que verificar como isso vai evoluir. O BC vai avaliar a economia brasileira e tomar a decisão mais adequada.

Em 2008, o contágio da economia brasileira ocorreu via crédito. Hoje quais são as ameaças?

Hoje o primeiro movimento se dá nos preços das commodities e na demanda por produtos brasileiros no exterior, que pode arrefecer. Em segundo lugar, cai o preço dos ativos pelo aumento da aversão ao risco. As ações caíram, mas tiveram uma correção técnica ontem e hoje. É prematuro dizer como vai evoluir nos próximos dias. Não há dúvida que hoje o canal de transmissão para o Brasil é comercial. Mas, como em 2008, isso pode mudar a cada 24 horas.

Se a transmissão é via comércio, como deve agir o governo?

Temos que aguardar como os diversos setores podem ser afetados. Qualquer generalização é perigosa.

O governo brasileiro disse que vai segurar os gastos, enquanto na crise de 2008 ocorreu o contrário. A receita tem que mudar?

Os problemas são diferentes. Em 2008, globalmente, tínhamos um problema de queda de demanda, gerada pela crise no crédito e pelo desemprego. A resposta geral foi o estímulo fiscal. Hoje a preocupação é a questão fiscal. É o contrário. A reação do governo brasileiro está correta. Mas é preciso separar bem a situação do Brasil e dos EUA e da Europa. A situação fiscal brasileira é muito confortável comparada com a maioria desses países. É bom ter cuidado e ser prudente, mas o Brasil não tem um problema fiscal. Só precisa ter cuidado para não ter.

Qual é a tendência para o câmbio? A guerra cambial continua ou há risco de ataque especulativo contra o real?

Temos duas forças contraditórias. O Federal Reserve (BC dos EUA) sinalizou a permanência de taxas de juros perto de zero até 2013 e deixou a porta aberta para uma terceira rodada de injeção de recursos no mercado. Isso significa mais liquidez, maior entrada de recursos no Brasil e valorização do real. Por outro lado, o enfraquecimento da demanda mundial pode levar a queda das commodities. A tendência do preço das commodities não está clara, mas pode levar a desvalorização do real. São fenômenos com efeitos contrários e o vetor resultante não é previsível. Em 2008, o grande vetor da desvalorização do real não foi as commodities, mas o colapso das linhas de crédito internacionais, que levaram as empresas a tomar recursos no Brasil e pagar empréstimos que venciam no exterior. Também tivemos remessas de recursos de filiais para as matrizes e remessas de fundos para cobrir saques maciços lá fora. E o problema dos derivativos nas empresas exportadoras.

O endividamento em dólar das empresas aumentou e está forte a remessa de lucros para o exterior. Esse problema pode se repetir?

O que gerou aquela crise não foi uma remessa normal de dividendos. Hoje as remessas aumentam porque as empresas têm mais lucro. O endividamento no exterior também é normal e não há sinal de problemas com derivativos. Pode existir algum problema no futuro? Sim, se houver o colapso de algum grande banco internacional que leve ao congelamento do crédito. Mas esse é um cenário técnico e o fator chave é o funcionamento regular do sistema financeiro. Outro ponto importante: a desvalorização do real em 2008 durou pouco porque o BC tinha US$ 200 bilhões de reservas e atuou. Hoje, com US$ 350 bilhões, temos muito mais. A tão criticada acumulação de reservas custa caro, mas é confortadora agora.