Título: O alcance da vitória russa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2008, Notas e Informações, p. A3

Negociado pelo presidente de turno da União Européia, o francês Nicolas Sarkozy, com os seus colegas Dmitri Medvedev, que recebe ordens do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, e o georgiano Mikhail Saakashvili, que cutucou com vara curta o urso da vizinhança, confiando pateticamente na proteção do seu padrinho George W. Bush, o cessar-fogo entre Moscou e Tbilisi é na realidade a certidão de nascimento de uma nova ordem internacional. O documento como que atesta a volta ao pódio de uma Rússia carregada de ambições seculares. Ela exibe afinidades com o regime soviético e com o império tzarista que o antecedeu, mas retém quase nada da abertura para a democracia liberal e para o livre mercado, sob o governo pró-ocidental de Boris Yeltsin, nos anos 1990. Putin tomou a si o desmanche do que foi um experimento devastador para a economia, o status e o auto-respeito do país. A sua decisão de ¿castigar¿ a Geórgia, como diz Medvedev, é indissociável dessa empreitada.

Nas entrelinhas, o texto do cessar-fogo consigna ainda o maior paradoxo dos tempos atuais - as limitações de que padece a superpotência americana. Os Estados Unidos, cujos gastos bélicos excedem várias vezes os de todas as outras nações, somados, simplesmente não têm como dissuadir ou responder, no plano militar, à primeira agressão sofrida por um seu Estado-cliente, também a primeira incursão russa no estrangeiro desde o fiasco do Afeganistão, nos anos 1980. É certo que a Geórgia não vale uma guerra para Washington, mas nem por isso estão errados os georgianos quando acusam a América de entregá-los à própria sorte, como os aliados fizeram com a Checoslováquia diante da Alemanha nazista, em 1938. O fato de que o presidente Saakashvili praticamente chamou a invasão, ao ordenar na semana passada um insano ataque ao enclave separatista da Ossétia do Sul, de maioria russa e com presença armada russa, não atenua a futilidade da política americana de criar focos de animosidade a Moscou nas suas cercanias e esferas de influência.

A diferença entre Bush e Putin é que Bush não se deu conta da obstinação de Putin em reerguer o poderio russo em todos os campos - ao passo que Putin entendeu que a política externa de puro poder adotada por Bush credenciava a Rússia a cuidar, à sua maneira, dos seus interesses geoestratégicos, a começar da região vital do Cáucaso, por onde passa o seu oleoduto vindo do Mar Cáspio, e onde a sua hegemonia é histórica. O que a impediria de usar força desproporcional contra a Geórgia? As instituições multilaterais desmoralizadas pelo bushismo? O poderio militar americano comprometido pela ocupação do Iraque e a guerra no Afeganistão? A Europa refém dos seus suprimentos energéticos? Isso quando a Rússia vive um período que nosso presidente chamaria de mágico, com as terceiras maiores reservas de divisas do mundo e um formidável superávit comercial proporcionado pelo petróleo e o gás. Putin ainda reconstruiu a sucateada indústria bélica russa e modernizou as suas Forças Armadas.

Sem falar na coesão dos russos em torno da sua liderança. Para a imensa maioria, com a sua queda por líderes fortes e marcada indiferença pelos valores democráticos ocidentais, o essencial é a restauração da economia e da posição do país no globo. É verdade que a Rússia quer ser admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Quer ainda deixar de ser uma espécie de apêndice ao G-7, o clube das nações mais ricas do globo, cristalizando a sua transformação em G-8. Em tese, é por onde os Estados Unidos poderiam dar o troco à Rússia. Mas falta combinar, no caso, com os europeus, cuja tendência, salvo na Polônia, República Checa e países bálticos - ex-satélites de Moscou -, parece ser a de virar o quanto antes a página georgiana.

É inequívoco que a Rússia saiu vitoriosa não só no campo militar, no qual praticamente não encontrou resistências, mas também nos termos do cessar-fogo. A Geórgia ganhou uma quirera: não haverá discussão internacional sobre o futuro das províncias separatistas (além da Ossétia do Sul, a Abkházia), o que consagraria a integridade territorial do país. Mas a Rússia ganhou o direito de manter as suas tropas nesses enclaves - onde não se imagina que as forças georgianas voltem a entrar.

E os Estados Unidos vão fazer o quê?