Título: A decisão só pode ser uma
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2008, Notas & Informações, p. A3

O mais antigo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, está certo ao considerar o processo que começará a ser julgado ali amanhã 'o mais importante de toda a história' da Corte, porque, argumenta, será uma deliberação sobre o direito à vida. Mas pode-se explicar de outras formas, quem sabe mais apropriadas, a importância excepcional desse julgamento. Para o relator da ação sobre a qual o Supremo vai se pronunciar, Carlos Ayres Britto, por exemplo, o que está em tela de juízo é um confronto entre ciência e religião - ou, pelo menos, entre ciência e religião católica. Uma terceira formulação, no entanto, talvez seja a mais cabal: o STF está na iminência de fazer história porque foi chamado a se pronunciar, em derradeira análise, sobre a separação constitucional entre Igreja e Estado no Brasil.

A matéria sub judice é o artigo 5º da Lei de Biossegurança, de 2005, que autoriza, sob condições as mais estritas, as pesquisas para fins terapêuticos com células-tronco, ou pluripotentes, extraídas de embriões humanos. Essas células são assim chamadas por sua propriedade de se transformar em qualquer das células especializadas que formam os diferentes tecidos do corpo. Exatamente por isso, tais células, implantadas no organismo, poderiam desempenhar as funções daquelas outras que ou nunca puderam fazê-lo, por má formação, ou perderam a capacidade para tanto, por terem falido. Desse modo, inúmeras doenças incuráveis e devastadoras, como diabetes, mal de Parkinson, Alzheimer e distrofia muscular - para citar apenas um punhado das que atacam milhões de adultos e crianças -, poderiam ser tratadas com mais sucesso do que até agora.

Saudadas pela maioria absoluta dos estudiosos do mundo inteiro como a descoberta mais promissora das ciências biomédicas, as pesquisas com células-tronco, extraídas de embriões nos primeiríssimos estágios de sua formação, são permitidas em países culturalmente tão distintos entre si como Espanha, Finlândia, Japão, Israel e Reino Unido. A grande exceção, como se sabe, são os Estados Unidos, onde o poder político do fundamentalismo religioso, no governo Bush, chegou a níveis sem paralelo nas sociedades desenvolvidas da atualidade. E foi por inequívoca motivação religiosa, apesar dos seus desmentidos, que o então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, entrou no Supremo, em maio de 2005, com uma ação direta de inconstitucionalidade contra os dispositivos da Lei de Biossegurança que tratam das células-tronco.

A sua tese é um sofisma. Invocando o princípio constitucional da defesa da vida e sustentando que as pesquisas com células embrionárias destroem vidas humanas, pede que sejam banidas. Primeiro, a lei só liberou os estudos e as terapias do gênero com embriões descartados, por inviáveis, nas clínicas de reprodução assistida ou congelados há no mínimo três anos. (Permitida no exterior, a clonagem terapêutica, obtenção de células-tronco a partir de outros tipos de embriões, é expressamente proibida na lei brasileira.) Ora, observam os cientistas, um embrião sem nenhuma chance de ser implantado em um útero, cujo destino inexorável, portanto, é o lixo, ou um embrião congelado, que aos genitores não mais interessa implantar, em hipótese alguma poderia ser considerado vida, ou vida em potencial.

Aliás, mesmo no útero, na reprodução natural, a implantação do embrião só ocorre a partir do 6º dia - e os biólogos trabalham com aglomerados celulares (blastocistos) de até 5 dias. Segundo - e mais importante ainda -, é a Igreja, não a Constituição, que estabelece que a vida se inicia no ato da concepção. Muitos dos mais respeitados cientistas pensam que, nos organismos complexos, a vida começa quando começa a atividade cerebral e termina quando ela cessa. Para outros, a vida humana, diferentemente da vida em geral, começa com a autoconsciência e se extingue quando ela se perde. De todo modo, a equação posta diante do STF é outra: não lhe compete definir o que é vida, mas decidir se as leis (que valem para todos), se o Estado (laico) e se a sociedade (com os seus adeptos de diversos credos, os seus agnósticos e ateus) devem se pautar pelo que determinada religião entende ser o início da vida. A decisão só pode ser uma.