Título: A imprensa, o Estado e a democracia
Autor: Costin, Claudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2007, Espaço Aberto, p. A2

Há poucos dias, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, criticou a grande imprensa brasileira por abordar de forma crítica o que ele entende ser o interesse partilhado do Brasil e de seu país. Não acredito que o leitor tenha ficado chocado, afinal, é comum aqui também, a cada vez que ocorre a revelação de fatos ou versões indesejáveis, atribuir a campanhas da mídia o desagradável registro de coisas que se preferem ocultas.

Não que jornais ou emissoras de televisão não possam ser usados como recursos de poder, a serviço de interesses econômicos ou políticos. Muitas vezes, os mesmos parlamentares ou dirigentes públicos que se queixam da imprensa detêm retransmissoras ou estações de rádio em seus redutos eleitorais. Aí divulgam, aos moldes do Alô, Presidente, de Caracas, sua versão dos fatos e achincalhes a inimigos, que também têm dificuldades de se defender.

Tampouco se deve esquecer que, por vezes, ataques injustificados foram perpetrados por veículos sérios de informação. O caso da Escola Base acabou denegrindo a vida de uma família que, como se pôde verificar depois, não havia cometido crime algum e teve, assim mesmo, a opinião pública mobilizada contra ela.

O que ocorre, porém, numa democracia é que, a despeito do poder econômico e de eventuais erros, a imprensa possibilita o controle social. Como poderia a população que deseja participar da vida de sua sociedade controlar a ação do Estado - que a despoja de recursos para, em contrapartida, prestar-lhe serviços e garantir-lhe direitos -, se a informação que recebesse fosse restrita a versões oficiais ou a teses sancionadas por agentes da censura? Além disso, se há versões consideradas erradas, há recursos disponibilizados em países democráticos, como o de exigir reparação na Justiça, o que fez com sucesso a família proprietária da Escola Base, ou, numa versão menos forte, procurar o jornal ou revista que as publicou, ou mesmo outra agência noticiosa, para explicar por que se discorda da abordagem.

O controle social possibilitado pela imprensa livre é a melhor maneira de combater desmandos administrativos, corrupção, clientelismo e outros males que afligem o cenário político latino-americano. Mesmo que ainda tenhamos um índice elevado de analfabetismo funcional (da ordem de 74%, segundo o Instituto Paulo Montenegro), o que nos deveria levar a lutar incessantemente pela melhoria da educação pública, a parcela da população que acaba tendo acesso à imprensa pode mobilizar corações e mentes para demandar um emprego mais adequado do dinheiro de todos.

O gasto público no Brasil não cessa de crescer. Muito do que tem sido feito reflete uma preocupação forte em sanar injustiças acumuladas historicamente. Afinal, temos uma elevada concentração de renda e demoramos mais que boa parte dos países deste continente, que se quer integrado, para colocar as crianças e os jovens na escola. Temos ainda problemas de saúde e de segurança pública, que devem ser sanados. Além disso, a fiscalização precisa se profissionalizar e modernizar. Por outro lado, foram criados, recentemente, mais 22 mil cargos de livre nomeação e admitido um número grande de funcionários em cargos de apoio administrativo, sem uma estratégia clara de mudança do perfil do servidor federal. Todas estas e outras questões podem e devem ser informadas por órgãos governamentais à população, para que ela esteja ciente dos difíceis dilemas no uso de recursos escassos.

Aqui também a imprensa tem o importante papel de interpretar números, formular hipóteses e, sobretudo, ouvir especialistas de diferentes posições que possam auxiliar o cidadão consciente em suas avaliações, que resultarão em escolhas futuras, como a de quem o representará ou implementará políticas públicas em seu nome.

E é na representação que aparece outra faceta importante da democracia. Logo após o encontro com o presidente Lula, Hugo Chávez criticou amargamente o Congresso brasileiro por retardar o ingresso da Venezuela no Mercosul. Este mesmo Congresso que começou a corrigir um erro que cometemos no passado ao manter o instituto do voto secreto em algumas decisões dos parlamentares. Um representante não pode ter voto secreto. Afinal, é escolhido para representar e, ao contrário do eleitor, senhor de suas próprias escolhas eleitorais, o parlamentar deve prestar contas de cada decisão tomada àqueles que o escolheram.

A rigor, Chávez parecia estar pedindo providências a Lula. Como se o Executivo devesse censurar um Congresso independente, que tem suas próprias instâncias e procedimentos para tomar decisões. Aborrecemo-nos muito com a demora do nosso Legislativo em eliminar o clientelismo e a corrupção (e mesmo reduzir o tamanho do gasto que a ele se associa), mas ainda não criaram nada melhor que a antiga idéia de Montesquieu dos Poderes autônomos, para dar consistência à democracia e contrapesos ao exercício do poder. Em episódios recentes no cenário nacional, vimos como o Executivo, o Judiciário (por meio do Supremo Tribunal Federal) e o Legislativo tiveram posturas diferentes, algumas até inesperadas, e a imprensa pôde, também em diferentes versões, esclarecer o cidadão sobre seus conteúdos. Isto tem nome: chama-se consolidação das instituições democráticas, por mais que alguns de nós (entre os quais me incluo) se tenham aborrecido e mesmo indignado com decisões adotadas.

E esta consolidação da democracia demanda persistência estratégica, já que se trata de um caminho longo e difícil, fuga de modelos populistas, preservação da liberdade de imprensa e um investimento forte em educação de qualidade. Afinal, o Brasil merece.

Claudia Costin, professora do Ibmec-SP e da Universidade de Montreal (Canadá), foi ministra da Administração Federal e Reforma do Estado e secretária da Cultura do Estado de São Paulo