Título: Mercados sob o signo da dúvida
Autor: Loyola, Gustavo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2007, Economia, p. B2

A turbulência recente encontra os mercados financeiros sob o signo da dúvida. Não que fortes ajustes de preços de ativos após um período de alta continuada sejam um fenômeno novo. Ao contrário, tempos de 'manias' seguidos de episódios de 'crashes' são uma característica histórica dos mercados financeiros. Como assinala Charles Kindleberger, crises financeiras são tema recorrente na literatura econômica. O que há de novo são os sofisticados instrumentos financeiros contemporâneos ainda não efetivamente testados sob estresse. Daí a 'grande dúvida': estamos hoje mais bem protegidos do risco de crises financeiras ou, ao contrário, mais expostos às suas conseqüências negativas?

O enredo é conhecido e, como nas novelas de TV, o que tem mudado são apenas os cenários e os personagens. No início, períodos de expansão econômica combinados com relativamente baixas taxas reais de juros reduzem a aversão ao risco dos agentes econômicos que se aventuram em investimentos financeiros sobre os quais não têm uma adequada avaliação dos riscos. Esse processo vai se reforçando ao longo do ciclo de expansão até que, subitamente, por razões muitas vezes desconhecidas, sobrevém a percepção de que tudo foi longe demais, o que desencadeia um processo feroz de liquidação dos investimentos, provocando queda rápida e descontrolada dos preços dos ativos e, freqüentemente, sérias crises financeiras.

Sob o prisma macroeconômico, a economia mundial se caracteriza, na última década, por um processo de expansão da liquidez combinado com um surpreendente bom comportamento da inflação na grande maioria dos países desenvolvidos e emergentes. Há várias explicações para tal fenômeno, entre os quais o aumento da credibilidade dos bancos centrais e os efeitos positivos da globalização produtiva e financeira. Nesse contexto, mesmo com a alta sustentada dos preços das principais commodities, incluindo o petróleo, tem sido possível manter a inflação sob controle, com taxas de juros relativamente baixas.

Ora, esse é justamente o ambiente ideal para o surgimento de 'bolhas' especulativas nos preços dos ativos. Discute-se muito na literatura econômica atual sobre o papel que os bancos centrais devem desempenhar em tais situações, mas o que tem prevalecido na prática é a ausência dessas venerandas instituições que hesitam, com boas razões, em aventurar-se na perigosa tarefa de determinar quais são os preços 'ideais' de ativos de naturezas tão díspares, como os imóveis, as ações e as commodities. Preferem os bancos centrais continuar focando o comportamento da inflação mensurada pelos índices de preços costumeiros, aliás, como recomendado na crescentemente popular teoria do inflation targeting.

Foi o que ocorreu. Os juros ficaram muito baixos por muito tempo. Bafejados por um período de expansão econômica, sob o signo principalmente do expressivo crescimento da economia chinesa, os preços dos ativos se elevaram em escala mundial, alimentados por uma farta oferta de crédito. Não mais o crédito bancário tradicional, fluindo diretamente para os tomadores finais, mas um tipo de crédito 'indireto' que flui por meio de veículos exóticos, os quais, em muitos casos, sofrem de crônico déficit de transparência.

Sem dúvida, o grande avanço na intermediação financeira nos últimos 30 anos se deu no capítulo da gestão de riscos e na criação de instrumentos para permitir sua mitigação e compartilhamento por agentes econômicos de distintas naturezas e perfis de risco. Inicialmente, houve a explosão no uso de derivativos financeiros que, entre outros benefícios, permitiram a convivência pacífica da economia real com regimes de taxas de câmbio flutuantes e com uma era de maior ativismo dos bancos centrais na política monetária. Em seguida, mais recentemente, prolifera o uso de instrumentos de securitização de crédito, sob várias formas e embalagens. As chamadas Collateralised-Debt Obligations (CDOs) são um exemplo do fenômeno do fatiamento e empacotamento de créditos que, no passado, jazeriam inertes nos balanços das instituições bancárias até seu vencimento.

Em tese, o espraiamento do risco de crédito pelos agentes econômicos deveria levar a maior estabilidade financeira. Cada qual assumiria a porção do risco que seria compatível com sua capacidade de absorvê-lo e gerenciá-lo. Sendo assim, num episódio cíclico de aumento da inadimplência dos devedores, os prejuízos seriam distribuídos e a probabilidade de uma crise sistêmica seria mais remota. Esse processo deveria ser facilitado pelos sofisticados modelos matemáticos de gestão de risco, hoje à disposição dos investidores e dos intermediários financeiros.

Ocorre, porém, que não há segurança absoluta de que esse processo tenha sido totalmente benigno, principalmente porque, como vimos, ele coincidiu com uma quadra de farta liquidez e baixa aversão ao risco. Desse modo, não se pode descartar a possibilidade de que tenha havido uma espécie de 'overdose' de risco de crédito por parte de alguns agentes econômicos e que, como resultado, o sistema tenha se tornado mais vulnerável a mudanças no ciclo econômico do que antes. Aliás, o próprio fato da existência desses instrumentos de mitigação do risco pode ter levado à concessão indiscriminada e imprudente de crédito, como parece ser o caso do segmento subprime do mercado de hipotecas norte-americano.

*Gustavo Loyola, ex-presidente do BC, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Celso Ming está em férias