Título: Crise aérea é ponta de iceberg
Autor: Loyola, Gustavo
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2007, Economia, p. B2

A crise dos transportes aéreos no Brasil é apenas a ponta de um iceberg de grandes proporções que há muito tempo vem afundando o crescimento econômico do País. Houve, de fato, grande incompetência na prevenção e no controle dessa crise específica por parte do governo Lula. Porém o diagnóstico do problema não deve parar nessa constatação quase óbvia, sob pena de assistirmos nos próximos meses e anos à múltipla eclosão de episódios assemelhados em outros segmentos da economia brasileira.

É necessário considerar inicialmente que a semente do colapso da infra-estrutura do transporte aéreo foi plantada nos idos de 1988, pela chamada ¿Constituição cidadã¿. Ao criar direitos sociais onerosos sem nenhuma preocupação com a aritmética das contas públicas, os constituintes de 1988 deram partida a uma tétrica engrenagem que, nos últimos 19 anos, praticamente aniquilou a capacidade de investimento público no Brasil, embora tenha feito duplicar a carga tributária como proporção do produto interno bruto (PIB).

Por causa disso, o Brasil sofre o paradoxo de ter elevada carga tributária com péssimos serviços públicos. O Estado é grande, mas ineficiente. As carências são enormes em áreas essenciais como saúde, segurança e educação. Em contrapartida, os gastos de custeio com pessoal e Previdência aumentaram exponencialmente nas duas últimas décadas. No caso do governo federal, o porcentual de despesas gerenciáveis cai seguidamente, pressionado pela elevação contínua dos gastos obrigatórios.

Desse modo, o caos orçamentário é um dos responsáveis pela crise do setor aéreo. O crescimento do tráfego aéreo não foi acompanhado pelos necessários investimentos em infra-estrutura. Como resultado, é provável que, no período mais recente, os coeficientes de segurança se tenham estreitado e a carga de trabalho dos profissionais do setor, aumentado de forma desarrazoada. Vale ressaltar que esse estado de coisas não difere muito do que vem ocorrendo em outros setores de infra-estrutura, como o de estradas e o de portos.

Entretanto, há um outro ingrediente perverso da Constituição de 1988 presente na atual crise do setor aéreo. Hoje, o administrador público está praticamente engessado no que se refere à prática de uma política de pessoal coerente para os servidores civis e militares. A ¿isonomite¿ - doença típica da ¿Constituição cidadã¿ - dificulta o exercício de uma política de pessoal que dê os incentivos corretos aos servidores, sem que isso importe no colapso das contas públicas. Assim, o que se vê hoje é uma política do ¿leva quem grita mais¿, gerando distorções monumentais nas remunerações dos servidores e incentivando atitudes extremas como a assumida pelos controladores de vôo.

Não bastasse isso, a paralisia no governo Lula do processo de modernização do Estado iniciado nas Presidências anteriores também contribuiu para a eclosão dos problemas do setor aéreo. Num nítido retrocesso, o governo atual adota uma postura estatizante que, por exemplo, incentivou a Infraero a se tornar mais uma empresa de administração de ¿shopping centers¿ do que de aeroportos. O ordálio sem fim dos passageiros no Aeroporto de Congonhas ilustra bem a lógica das prioridades invertidas dessa empresa estatal, que leva as pistas a serem recuperadas somente após a construção do novo terminal. O produto das caras taxas aeroportuárias pagas no Brasil deveria estar sendo canalizado para fins mais nobres do que para a construção de ¿aeroshoppings¿, que, aliás, poderiam ser erigidos com recursos exclusivamente privados.

Além do retrocesso estatizante, o governo Lula é culpado pela politização das escolhas dos dirigentes das agências reguladoras, incluindo os da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Trata-se de uma agência recentemente criada, mas que aparentemente não conseguiu substituir o antigo Departamento de Aviação Civil (DAC) com vantagem. Ao contrário, a condução pela agência dos problemas do transporte aéreo nos últimos meses vem deixando muito a desejar, provavelmente pela inexperiência de seus diretores nos assuntos sob sua responsabilidade.

Nenhum dos problemas acima citados é exclusivo do setor aéreo. Eles existem também em outras áreas da infra-estrutura, como transportes terrestres, portos, energia e saneamento. Lastimavelmente, o recém-lançado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) indica que o radar do governo ainda não captou as verdadeiras causas da crise da infra-estrutura no Brasil, já que abriu mão de realizar as reformas necessárias para recuperar a capacidade de investimento do setor público e melhorar o ambiente para o investimento privado. Nada nos resta, ao que tudo indica, a não ser torcer para que esse titanic chamado Brasil não encontre outros icebergs mais adiante.