Título: Antiamericanismo e a relação Brasil-EUA
Autor: Lafer, Celso
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

Os EUA são hoje a única superpotência mundial. No período da guerra fria foram, com a União Soviética, decisivos na estruturação da ordem mundial. Tiveram assim, nas últimas décadas, um papel fundamental na configuração do mundo em que vivemos. Por isso os Estados que integram o planeta necessariamente inseriram nas suas agendas o tema do relacionamento - positivo ou negativo - com os EUA.

No caso da América Latina, o significado do relacionamento com os EUA tem como dado adicional o fato de ser uma região onde os EUA são e foram a grande potência hemisférica. Daí, no correr dos tempos, na condução das políticas externas dos países da região, em função de suas especificidades, distintas formas tanto de acomodação quanto de oposição aos EUA.

A década de 1990, com o fim da bipolaridade, gerou expectativas de consensos globais e de diminuição das tensões internacionais. O ataque terrorista aos EUA em setembro de 2001 e o unilateralismo da intervenção militar norte-americana no Iraque em 2003, com os seus desdobramentos, solaparam estas expectativas. Assinalaram, como observou Rubens Ricupero, uma emblemática 'perda da inocência'. Um dos seus resultados foi um generalizado aflorar do antiamericanismo.

No antiamericanismo contemporâneo uma vertente importante provém da unipolaridade do poder. Esta ensejou uma atuação norte-americana, desconsideradora das instâncias multilaterais e do Direito Internacional. Daí incertezas geradoras da tensão difusa proveniente do unilateralismo do exercício da hegemonia norte-americana. Uma das suas conseqüências é a aspiração de conter a unipolaridade construindo coligações reequilibradoras da balança do poder.

Outra vertente do antiamericanismo é o movimento antiglobalização, que é uma expressão da crítica ao capitalismo - que os EUA encarnam - e das conseqüências que a prevalência transnacional dos mercados gera para a vida e o emprego das pessoas nas sociedades. Esta vertente tem componentes da tradição marxista-leninista do antiimperialismo e é parte da sensibilidade dos herdeiros da esquerda radical que, por exemplo, reverbera no Fórum Social de Porto Alegre.

Também cabe mencionar, em razão da sua especificidade, a vertente do antiamericanismo que provém de inequívocas diferenças de concepção de vida e de mundo. É o caso do antiocidentalismo do islã radical que identifica nos EUA o inimigo. Daí uma faceta do papel político antiamericano da religião no Oriente Médio.

No trato da complexidade do antiamericanismo, Peter Katzenstein e Robert Keohane observam que as atitudes negativas em relação aos EUA derivam de uma dupla oposição: a oposição ao que os EUA fazem e a oposição ao que os EUA são. Ambas podem levar a críticas e desconfianças, mas a última é a 'força profunda' do antiamericanismo radical. Desta a Venezuela de Hugo Chávez é uma encarnação.

Não é fácil determinar o que os EUA são, pois se trata de um país polivalente no âmbito do qual existem muitas tendências. É, por exemplo, ao mesmo tempo moralista e permissivo, aberto ao progresso da ciência secular e a uma religiosidade fundamentalista, gerador de oportunidades e socialmente excludente, culturalmente aberto e paroquial, democrático e prepotente, inovador e conservador. É por isso que em 1954 Hannah Arendt disse que os EUA têm sido, para a Europa, tanto sonho quanto pesadelo.

Esta observação tem grande significado no imaginário da nossa região não apenas pela memória histórica do exercício do poder norte-americano no Hemisfério, mas também porque na construção das diversas identidades latino-americanas, em especial no século 20, o Outro, por excelência, que leva à afirmação da diferença, são os EUA. Do ponto de vista da política externa, um desdobramento disso na região é a afirmação de um nacionalismo voltado para não perder o controle soberano sobre os termos da inserção do Estado no sistema internacional e regional. Esta postura, que leva em conta riscos do predomínio norte-americano na região, pode ir além da crítica ou da desconfiança em relação ao que os EUA fazem e desaguar na oposição ao que os EUA são.

Concluo estas considerações reflexivas sobre antiamericanismo e política externa - que estão na ordem do dia com as declarações do embaixador Abdenur, sobre as quais já me manifestei publicamente com simpatia - com uma sucinta avaliação sobre quais devem ser, no meu entender, as linhas mestras da relação Brasil-EUA.

O Brasil é um país de escala continental, com válidos interesses gerais e específicos na região e no mundo. Ao traduzir, no momento atual, na condução da sua política externa, necessidades internas em possibilidades externas, não deve pautar o seu relacionamento com os EUA com base num alinhamento que caracterizou, por exemplo, o México de Salinas ou a Argentina de Menem. Nem deve adotar a postura do revisionismo completo da ordem mundial, identificando os EUA como um inimigo, ao modo do antiamericanismo radical da Venezuela de Hugo Chávez. Deve, com finura analítica, sem incidir nos equívocos de subestimar ou superestimar nosso papel na região e no mundo, levar em conta o que os EUA estão fazendo, neste momento em que reajustam suas posições à luz das dificuldades que enfrentam no sistema internacional. Isto significa, para recorrer com liberdade a reflexões do politólogo argentino Roberto Russell, três coisas: 1) A utilização diligente dos espaços oferecidos pelas instâncias multilaterais para cultivar nossa autonomia, 2) o empenho em encontrar os caminhos da colaboração possível com base na reciprocidade dos interesses e 3) o circunscrever a oposição aos EUA aos temas que são de efetivo interesse nacional, avaliados sem a latência do antiamericanismo radical.