Título: Aluno viu `bola na marca do pênalti'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/09/2006, Nacional, p. A17

Encarregada de examinar a denúncia e dar um veredicto que pode chegar até à demissão do professor de ciência política Paulo Kramer, sentença que parece pouquíssimo provável, uma comissão de três professores decidirá sobre uma questão que tem vários ângulos. Um deles é elementar: toda pessoa tem direito a uma imagem digna e ofensas devem ser repelidas. Há, porém, um caldeirão de conflitos num episódio com grande combustível político.

Vários alunos se mobilizaram na acusação ao professor, mas Gustavo Amora é uma espécie de porta-voz, aquele que sempre é chamado para dar entrevistas e explicações. Ele considera que a luta contra o racismo é uma causa importante em sua vida e admite: ¿(Kramer) deixou a bola na marca do pênalti para eu chutar e não poderia perder essa oportunidade.¿ No e-mail ao professor, Amora refere-se à existência de ¿dois pólos¿ na universidade, sugerindo uma visão de mundo dividido entre negros e brancos, o que já desenha uma visão preconcebida a seu engajamento.

Durante uma discussão em classe, Amora apontou Kramer como ¿uma presa fácil¿ - expressão que tem o mesmo sentido, de quem procura um alvo para atingir de qualquer maneira. ¿Acho que eles querem atingir um professor de qualquer maneira, para provar que existe racismo por aqui¿, diz uma professora, que prefere ser mantida no anonimato.

Muitos professores murmuram a suspeita de que tamanha militância esconda um plano de seguir carreira como político. Amora reage indignado: ¿Os jornalistas sempre perguntam isso, imaginando que eu tenho algum interesse oculto. É uma espiral de cinismo. Ninguém pode acreditar em nada nem ter valor. Sempre tem de haver algum interesse oculto. Mas eu sou contra o preconceito.¿

A ¿técnica Juruna¿ de animar conflitos políticos com um gravador nem sempre prejudica só o adversário. Hoje, a audição dos 37 minutos de gravação de um diálogo azedo entre Kramer e os estudantes tem muitas utilidades. Uma delas é alimentar reportagens sobre o assunto, divulgando trechos comprometedores contra o adversário. Foi assim que um telejornal local divulgou uma passagem da discussão gravada em classe na qual Kramer ameaça usar o termo crioulo ¿nem que seja com mandato de segurança¿. Mas a fita tem outras revelações, num ambiente tenso, onde é fácil dizer o que não se quer nem se deve - de um lado e de outro.

JORGE AMADO

Se, em determinado momento, se ouve a voz de Kramer em tom de ameaça branda, repetindo um ditado popular sobre decisões imprudentes, em outro ele coloca aos estudantes uma questão que, com ânimos serenados, deveria fazer pensar.

O professor recorda que Jorge Amado não poderia ter escrito uma linha sequer se fosse impedido de empregar a expressão ¿crioulo¿ e que o gênio americano William Faulkner não teria nem chegado às livrarias se seu vocabulário fosse submetido à sensibilidade politicamente correta. ¿Meu ponto é a liberdade de expressão¿, diz Kramer para os alunos. ¿Para mim e para todos.¿

A fita também contém uma discussão sobre holocausto, na qual o professor lembra que colocar em dúvida sua existência ¿é tão absurdo quanto questionar a existência do mensalão, como fazem alguns petistas¿.

Amora admite que Kramer costuma dispensar um tratamento cordial aos alunos. ¿Ele conversa conosco quando nos encontra fora do ambiente escolar, enquanto muitos professores simplesmente nos ignoram¿, diz. Entre alunos que ficaram fora do conflito, Kramer tem a fama de ser professor estimulante. ¿Certa vez ele nos deu um autor nazista para discutirmos em sala de aula¿, lembra André Monte Rosa, de outra turma de pós-graduação, referindo-se a Carl Schmidt.

Rosa classifica Kramer como um dos melhores professores da UnB. ¿Seu estilo é provocador e isso faz com que alguns alunos se sintam agredidos. Mas é bom.¿ Convidado a apontar um caso em que o professor tivesse ofendido um aluno, Rosa disse não se recordar de um exemplo específico. A professora Lucia Avelar diz que Kramer ¿é uma das melhores cabeças da universidade¿. E garante: ¿Não é racista. É destemperado, mas é bom para os alunos.¿

O Estado tentou ouvir a direção da universidade sobre o caso, mas não conseguiu. Ali se fala com orgulho da história da UnB, criada pelo educador Darcy Ribeiro. A UnB tem campus avançados em cidades-satélites, faz trabalho educativo junto a acampamentos de sem-terra e colônias de seringueiros.

A ação afirmativa faz parte desse universo extracurricular, que politiza o ambiente e mobiliza estudantes, mas não ajuda a melhorar a qualidade do ensino nem a pesquisa na universidade, que só floresce em ambientes de máximo de liberdade, na fronteira do inconveniente. Talvez seja essa a principal lição que a UnB possa tirar do caso do professor Kramer.