Título: 108 dias depois, Igreja comanda reação pela paz
Autor: Sergio Pompeu , José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/08/2006, Cidades, p. C1

Hoje se completam 108 dias do início dos ataques do Primeiro Comando da Capital em São Paulo. Atentados que desafiaram o Estado de Direito, deixaram centenas de mortes e foram recebidos com um misto de pavor e perplexidade. A ponto de só hoje a sociedade ensaiar uma reação, comandada pela Igreja Católica. Nas missas dominicais, padres das 1.980 igrejas do Estado lerão uma mensagem que faz um diagnóstico da crise e propõe saídas, como o estímulo à adoção de penas alternativas.

O artífice dessa reação, o cardeal-arcebispo d. Claudio Hummes, enxerga na mobilização tardia um reflexo da decepção com os políticos - mais especificamente, com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Que, no entender do cardeal, não fez o que a própria Igreja esperava: a promoção de valores como justiça social, solidariedade, direitos humanos, liberdade. Sem falar nas denúncias de corrupção, "azedas de serem engolidas".

D. Cláudio fala sobre a crise e a decepção com os políticos com a autoridade de líder religioso - na verdade, um eterno papável - e de simpatizante de primeira hora do Lula sindicalista. Entre 1978 e 82, o então bispo de Santo André desafiou o regime militar e apoiou abertamente as greves de metalúrgicos do ABC. Veja abaixo trechos da entrevista:

Por que o senhor decidiu iniciar esta mobilização agora? O sr. não acha que a sociedade tem reagido com apatia a esta onda de atentados do PCC? Na Espanha, quando o ETA (grupo separatista basco) faz um ataque, a população sai em massa às ruas. Por que em São Paulo a reação foi tão tardia?

Houve manifestações menores, da parte de autoridades, eu mesmo, na época, fui abordado, dei minha resposta. Mas não houve de fato uma grande manifestação do povo. E também tinha aquilo: o que é exatamente isto (a onda de ataques do crime organizado)? O que representa? Ninguém estava conseguindo medir naquele instante o que era exatamente esse crime organizado, o PCC, para poder estimular a população a fazer uma grande manifestação. Corria-se o risco de convocar, e as pessoas não darem resposta.

Porque o que a gente vê: ultimamente, só se consegue reunir pessoas quando há shows. Por exemplo: se você tem 50 trios elétricos, faz um arrastão pela cidade e promete show - no meio do qual você pode dar mensagens, obviamente -, o povo vai e escuta. Mas, na verdade, ele vai por causa do show. Acho que isto é complicado para a Igreja.

Eu sei que há igrejas que fazem, até a católica. Mas vejo nisso o ingrediente show, que o povo vai atrás. Simplesmente ir para uma causa que ainda não estão avaliando suficientemente a importância, que isso (a mobilização) poderia mudar alguma coisa... Porque também muitos (do povo) se reuniram e não mudou nada.

Então, há um certo desânimo, e os políticos não têm muito poder de convocação. Porque as coisas não mudaram, havia antes sempre aquela grande esperança: 'No dia em que nós pusermos no poder a nossa gente, do povo, que nos representa, do nosso partido, que é um partido do povo, o Partido dos Trabalhadores...' Enquanto isto não acontecia, havia muita mobilização para que isto um dia acontecesse. Era até religiosamente avaliado como ajudar a abrir as portas para os grandes valores do Reino de Deus: justiça social, solidariedade, direitos humanos, liberdade. Tudo isto são também valores cristãos. Isto tudo vinha junto um pouco. Isto fazia com que a própria Igreja também conseguisse reunir muitas pessoas ao redor destas grandes causas. Porque ainda não se havia chegado.

Uma vez chegado, de fato o governo do PT, digamos claramente, do nosso presidente Lula, então, obviamente estava ali a expectativa de que era hora de tudo acontecer. Então, muita coisa acabou se acalmando mais, serenando. E agora estamos esperando: 'Nós estamos com ele, estamos lá. E somos nós os responsáveis para realizar o que sempre quisemos.' Isto acabou não acontecendo na medida que o povo, digamos, aspirava.

E junto ainda aconteceu toda essa grande, digamos, essa grande corrupção, essa onda de denúncias de fatos de corrupção que foram assim muito decepcionantes para o povo e foram azedas de serem engolidas. Exatamente porque aconteceu num governo em que esse povo todo que fazia manifestação, que ia para a rua, estava apostando. Então, acho que há uma falta de ânimo. Alguma coisa deve acontecer de novo para que se possa fazer grandes mobilizações.

Bom, então, o que finalmente achamos que devíamos nos pronunciar, depois do terceiro ataque, então, a gente foi vendo que isto (a onda de violência) não iria terminar. Pelo contrário: era uma coisa que parecia instalada já e, quando se decidisse (o crime organizado), faria novos ataques. Aos poucos a imprensa, o poder público e o poder de segurança pública foram revelando a força e a importância do que era esse tal de crime organizado, quer dizer, a sociedade foi sendo informada de que aquilo era só a erupção de alguma coisa muito ramificada, crescente e realmente perigosa. Aí é que o povo começou a se dar conta.

Também acho importante o fato de o povo ter continuado a vida normal. Houve só pequenos períodos, por exemplo, em que, em certas regiões, mandaram fechar o comércio. Mas a cidade não parou. Parou só quando não tinha mais ônibus.

Antes disso parou quando houve a onda de boataria...

Exato, exato. Aí houve, de fato, um susto. Mas ela (a população) não se entregou. Ela voltou imediatamente ao trabalho. E foi em frente. E nisso a gente tem de continuar insistindo, a cidade não pode se entregar. A gente não pode fazer comparações com o ETA, porque o ETA é um fenômeno muito ativo, e o povo espanhol está realmente cansado dos atentados. De repente, decidiu: toda vez que acontecer, vamos para a rua. Já se tornou um rito, de sempre ter resposta imediata.

Aqui, o que nós resolvemos finalmente foi fazer uma mensagem. Nós tínhamos feito isto para as dioceses aqui da Grande São Paulo. Que, então, num mesmo dia se fizesse em todas as igrejas uma grande celebração pela paz. Nós achamos que alcançaríamos muito mais gente do que convocando para a praça pública. Levaríamos as idéias para muito mais gente e poderia ser um sinal mais forte, num primeiro momento. E convidamos também que as pessoas colocassem bandeiras brancas nas janelas, enfim, mas a gente sabe que nisto precisa muito dos meios de comunicação, que estimulem isto, que divulguem.

Isto teria visibilidade e não exporia demais as pessoas. Aí bispos de todo o Estado pediram para aderir a esse movimento. Eles vão ler a mesma mensagem, com celebrações em todas as igrejas. Algumas igrejas estão pedindo que (as pessoas) vão, eventualmente, de vestes brancas. Mas o que pedimos foi: vão para as igrejas com algum sinal, sejam bandeirinhas ou lenços brancos. E, nas casas, coloquem um pano branco, em sinal de adesão.