Título: 40 anos de Fundo de Garantia
Autor: Almir Pazzianotto Pinto
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

Há 40 anos a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) experimentou radical transformação no sistema de garantia de emprego, a única de grande relevo realizada em toda a sua longa e venerável existência. Refiro-me à Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, sancionada pelo presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, secundado pelos ministros Octávio Bulhões, da Fazenda, Nascimento e Silva, do Trabalho, e Roberto Campos, do Planejamento.

A lei, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1967, instituiu sistema alternativo ao da indenização por antiguidade, que também previa estabilidade no emprego após dez anos de serviço para o mesmo empregador. Aos trabalhadores a nova legislação informava que estava assegurado o direito de opção. Na realidade, contudo, o novo regime viera para absorver e substituir o velho, pois aqueles que não aderissem ao FGTS também não conseguiriam emprego ou acabavam por ser dispensados. O valor da indenização devida aos injustamente demitidos também se reduziu, anomalia que a Justiça do Trabalho se recusou a corrigir, ao fixar, precipitadamente, no Enunciado nº 98 que "a equivalência entre os regimes do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e da estabilidade da Consolidação das Leis do Trabalho é meramente jurídica e não econômica, sendo indevidos quaisquer valores a título de reposição de diferenças".

Quem relatou de maneira sincera e objetiva a gênese do FGTS foi Luís Vianna Filho, ministro da Casa Civil, no livro que escreveu sobre O Governo Castelo Branco. Em determinado momento, dizia ele: "A idéia partira de Roberto Campos, impressionado com as dificuldades criadas à produtividade pela estabilidade, que também provocava constantes desarmonias nas relações empresariais. Ele chegara a aventá-la no Paeg. Outros motivos para a criação do Fundo de Garantia foram os empecilhos à compra de empresas, e ao movimento de fusões e concentrações decorrentes da existência de passivos trabalhistas. Castelo Branco desejava vender a Fábrica Nacional de Motores, cujos déficits eram intoleráveis, sem trazer contribuição especial à economia, pois caminhões podiam ser eficientemente produzidos pela iniciativa privada. Roberto Campos lembrou-lhe que, dado o passivo trabalhista (cerca de 4 mil operários, muitos dos quais estáveis), a fábrica seria quase invendável, problema idêntico ao de várias outras indústrias, que não poderiam ser compradas ou incorporadas, estando condenadas a lenta agonia, em virtude de ônus trabalhista."

Autorizado por Castelo Branco, Roberto Campos entendeu-se com Nascimento e Silva, à época na presidência do Banco Nacional da Habitação (BNH), criado em 1964, do que resultou a formação de grupo de trabalho, entregue à direção do dr. Mário Trindade, diretor de Recursos Financeiros e Investimentos do BNH. Após refletir alguns dias em Campos do Jordão, Mário Trindade apresentou proposta de instituição de fundo financeiro, constituído por contribuições patronais obrigatórias, destinado a assegurar ao empregado reparação financeira nas dissoluções contratuais, o que resolveria, de acordo com a fórmula aventada, o enigma da estabilidade e o problema da falta de recursos do BNH.

As entidades sindicais de trabalhadores se opuseram inicialmente à extinção da indenização proporcional ao tempo de serviço e da estabilidade, medidas julgadas extremamente danosas ao movimento sindical e às classes assalariadas. O governo empenhou todas as forças na aprovação da nova lei, o que não lhe foi difícil diante do Congresso Nacional atemorizado pelo clima de insegurança institucional, reinante durante o regime militar. Na avaliação de Luís Vianna Filho, o Fundo de Garantia provocou virtual revolução nas "relações trabalhistas, daí por diante menos conflitantes, mas também na mobilidade dos empregados, na sua vida empresarial. Outrossim, proporcionou ao BNH imensos recursos para construção de centenas de milhares de habitações, bem como sistemas de abastecimento de água e de esgotos, no interior do País. E rapidamente os trabalhadores começaram a renunciar à estabilidade: o mito caía".

Decorridos 40 anos, poucos se lembram do Banco Nacional da Habitação, extinto em 1986 pelo presidente Sarney; a gestão de milhões de contas, ativas, inativas ou definitivamente abandonadas, foi repassada à Caixa Econômica Federal (CEF); o problema da habitação popular persiste; os passivos trabalhistas, revelados ou ocultos, constituem poderoso obstáculo às aquisições, fusões, incorporações e concentrações de empresas; e a falta de depósitos, como tardiamente se constata, provoca irreparáveis prejuízos aos empregados de empresas inadimplentes.

Para movimentar depósitos que lhe pertencem, mas permanecem retidos pela CEF, o trabalhador deve ser despedido sem justa causa, aposentar-se ou, na pior de todas as hipóteses, morrer, quando o dinheiro passa ao patrimônio dos dependentes. A quem quiser se transferir de emprego, mudar de vida ou dar início a pequeno negócio, o sistema nega acesso à poupança que é sua. O número de conflitos trabalhistas não se reduziu; ao contrário, aumentou, e continua a se agigantar. Os empregadores, por sua vez, se queixam do valor da contribuição e da exagerada indenização que pagam nas dispensas, aumentada, pela Constituição de 1988, de 10% para 40%, dos depósitos atualizados.

Se Roberto Campos e Mário Trindade estivessem vivos, constatariam que o remédio por eles projetado e criado como solução para problemas gerados pelo passivo trabalhista não surtiu os resultados esperados. Talvez seja o caso de voltarmos à indenização prevista na CLT, desacompanhada de estabilidade.

Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (aposentado)