Título: Insensata esperança?
Autor: Pedro S. Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

"Lula quer uma campanha de comparação entre governos, um duelo com o tucano da vez. Se o PSDB quiser o mesmo, o que não o impede de tocar na ferida ética do PT, ganharão os eleitores e a cultura política." A frase é da competente Teresa Cruvinel em sua coluna de 22 de janeiro deste ano. Que esta é a estratégia do presidente, há tempos em plena campanha, já está mais que evidente. Desnecessário talvez o reconhecimento de que nada impede a oposição de seguir a estratégia que lhe pareça apropriada, inclusive a de não se sentir "impedida de tocar" na fratura exposta da "ferida ética" do PT.

Mas registro a frase porque, com todo o respeito que a colunista sabe que lhe devoto, não creio que "a cultura política" do País e mesmo os eleitores tenham muito a ganhar com uma apaixonada tentativa de concentrar o debate eleitoral deste ano numa batalha de marqueteiros brandindo estatísticas sobre realizações de quatro anos do governo Lula contra médias dos oito anos do governo FHC. Na verdade, a julgar por dezenas de improvisos presidenciais e de artigos de alguns "altos companheiros" agora a cargo da campanha, a estratégia parece ser a de afirmar que não é possível, em apenas quatro anos, resolver todos os problemas não resolvidos pelas elites que teriam governado o País ao longo de 502 anos, desde a Descoberta ao início da Nova Era.

Auto-Engano é um belo livro de Eduardo Giannetti que contém páginas brilhantes sobre as duas lapidares inscrições do Templo de Apolo em Delfos: "Conhece-te a ti mesmo" e "nada em excesso", grandes lições de sabedoria sobre as quais deveriam refletir aqueles que não conseguem conter e impor certos limites à empolgação consigo mesmo e ao auto-elogio (que são formas de auto-engano), num processo de "inflação de si" e de "deflação do outro" que em nada contribui, ao contrário, para o desenvolvimento da cultura política do País. Tampouco para o importante debate de 2006 sobre os rumos do Brasil no próximo quadriênio.

É verdade que cada sociedade está sempre revisitando, reinterpretando e mesmo reescrevendo seu passado em função não apenas dos desafios mais prementes do presente, como também dos seus sonhos, desejos, expectativas e esperanças para o futuro. É neste sentido que a História é um infindável diálogo entre passado e futuro.

Mas, se vamos olhar construtivamente para o passado, não deveria ser para uma seletiva e eleitoralmente motivada comparação de certas estatísticas convenientemente arranjadas para impressionar incautos. Ou para avaliações marcadas pelo signo do auto-engano, como a do atual ministro da Fazenda no dia seguinte à sua posse, ao afirmar que "a responsabilidade fiscal foi uma conquista deste governo". Como teria sido "o câmbio flutuante" contraposto à política cambial "do governo anterior", como fez o ministro, concluindo, majestoso: "Nunca o Brasil teve política tão responsável." O monopólio da ética na política (que deu no que deu) sendo substituído pelo monopólio da responsabilidade econômica. Títulos autoconferidos, formas de auto-engano.

Em meio a este pouco produtivo tiroteio, voltado mais para o passado do que para o futuro (no qual, espero, estará mais interessado o eleitor), gostaria de voltar a um tema que me é caro e no qual continuo, apesar de tudo, depositando alguma esperança: a busca, de boa-fé e com um mínimo de honestidade intelectual, por ampliar o espaço para convergências - que já vem ocorrendo há anos - em torno de questões básicas para o nosso futuro.

No que diz respeito ao tema central da construção das condições para o crescimento econômico sustentado, creio que estamos avançando, como sociedade, na compreensão da natureza dos desafios a enfrentar. O País não acredita mais em mágicas, rupturas, demagogias e voluntarismos. O País hoje acredita mais em trabalho sério, persistência, coerência, continuidade do que deva ser preservado, mudança pensada do que deve ser mudado, menos bravata e falação fácil, mais ação operacional conseqüente, resultados efetivos, ética na política.

Na área macroeconômica, estamos no 12º ano de inflação sob controle, com o regime de metas consolidado como conceito. A militância partidária já não atira abertamente contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Começamos a ter maior convergência sobre a necessidade, imperiosa, de controlar a expansão dos gastos correntes do governo para abrir espaço para queda mais acelerada dos juros, redução da carga tributária, aumento do investimento público e do crescimento econômico. O câmbio flutuante veio para ficar, desde janeiro de 1999, com as intervenções que não signifiquem seu abandono.

Mas a relativa estabilidade macroeconômica, embora absolutamente indispensável, por si só, não assegura o crescimento. O crescimento depende de convergências adicionais ainda em gestação em três grandes áreas "não-macro", que, espero, possam estar ocupando espaço crescente no debate público informado no País.

A primeira diz respeito aos marcos regulatórios, particularmente na área de infra-estrutura, ao contexto macroeconômico e ao conjunto das barreiras institucionais e burocráticas ao crescimento do investimento privado e à capacidade empreendedora dos brasileiros, sem os quais não há crescimento sustentado por longo prazo. Há uma extensa e complexa agenda pela frente nesta área.

A segunda diz respeito à qualidade da reflexão e do debate sobre a eficiência dos gastos públicos nas áreas sociais-chave para o crescimento: educação, saúde e segurança pública.

A terceira diz respeito às indispensáveis reformas nas quais teremos de avançar nos próximos anos: Previdência, trabalhista e tributária.

Como escreveu o velho rabino, não é necessário concluir os trabalhos (em todas estas áreas), mas não temos, como país, a escolha de deles desistir.