Título: JK e a minissérie
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

A minissérie JK vem tendo grande sucesso, que muito se deve à qualidade do roteiro de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira; ao esmero das gravações da TV Globo; ao talento dos atores que dão vida a um enredo que combina, com engenho televisivo, História e criação. A base que instiga o interesse do público, porém, é o próprio JK.

A propensão para a memória política não é forte no Brasil. Daí a pergunta que a minissérie suscita: o que explica, decorridos tantos anos de sua presidência e do seu falecimento, em 1976, a continuidade de JK no imaginário brasileiro?

Juscelino foi uma cativante personalidade, e excepcionais foram as realizações do seu qüinqüênio de governo (31/1/1956 a 31/1/1961), que associou o desenvolvimento à democracia. No entanto, estreitas foram as margens de sua vitória eleitoral e consideráveis as dificuldades que enfrentou para tomar posse. Sua gestão presidencial foi contestada por uma aguerrida oposição política e seus críticos o responsabilizaram por um agravamento da inflação e do endividamento externo. Jânio se elegeu como um anti-JK e, na seqüência, as radicalizações do período Goulart desembocaram no regime militar de 1964. Este, receoso do potencial político-eleitoral de JK, promoveu sua cassação, forçou seu exílio e o humilhou com perseguições.

Quando defendi a minha tese de doutoramento nos EUA, na Universidade de Cornell, em 1970, sobre o seu Programa de Metas, ele era um proscrito político. Na carta em que me enviou em 10/2/1972 (que é o "prefácio" à edição brasileira da minha tese, publicada em 2002 pela Editora FGV), dizia JK que o meu trabalho "foi a primeira experiência honesta de escrever alguma coisa sobre o governo de um ex-presidente que mal deixou o poder se viu envolvido num temporal que não mais permitiu que a sua obra fosse examinada com isenção".

Na minha tese tratei da obra de JK, analisando o porquê e como imprimiu um inovador sentido de direção à sociedade brasileira por meio do Programa de Metas, que foi o fulcro irradiador da sua gestão. O programa, respondendo ao alargamento das bases populares da democracia, planejou e logrou aumentar o nível de vida, o crescimento do emprego e a expansão das possibilidades de consumo. Na identificação das metas foram levados em conta os projetos elaborados no segundo governo Vargas pela Comissão Mista Brasil-EUA, articulados, no entanto, numa racionalidade superior, atenta à interdependência dinâmica da economia. JK confiou a execução das metas a uma "administração paralela", dentro da própria máquina governamental, que foi operacionalmente bem-sucedida, pois controlou a concessão dos incentivos e estímulos que nas esferas pública e privada ensejaram a orientação do investimento sem desconsiderar o mercado.

JK viabilizou seu projeto de país somando talento executivo, capacidade de mobilizar e motivar equipes, convicção democrática e competência política para ter e manter a maioria no Congresso. Agregou às metas de energia, transportes e industrialização a construção de Brasília, que induziu à interiorização econômica do Brasil e, com a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), enfrentou os problemas das disparidades regionais, que dificultam o equilíbrio federativo.

JK foi, assim, um homem de Estado bem-sucedido. Fez "o País tomar conhecimento de suas próprias forças e utilizá-las para realizar seu desenvolvimento econômico", na sua justa auto-avaliação em Por Que Construí Brasília (1976), no qual também fez a crítica dos populismos inconseqüentes. Era, porém, controvertido aos olhos de seus adversários políticos. O consenso nacional em torno da sua atuação começou a se formar com seu enterro em Brasília: um protesto contra o regime militar que carregava no seu bojo o reconhecimento da importância de JK na configuração dos rumos do País no século 20.

Tancredo Neves, homenageando a sua memória, disse que uma das dimensões do líder é a capacidade de "argamassar as virtudes e defeitos de seu povo (...) para rasgar nos horizontes" a perspectiva de seu futuro. Foi o que fez JK graças às dualidades que caracterizavam sua personalidade e que explicam, no meu entender, a persistência da sua presença no imaginário político brasileiro.

JK foi, ao mesmo tempo, moderno e tradicional. Abriu espaço para a arquitetura de Niemeyer. Foi o primeiro presidente a administrar o País com o avião e a se comunicar com a sociedade pela TV. Não deixou, no entanto, de ser tradicional. É o que mostram as etapas de sua carreira política que, se teve ousadias, não se caracterizou pela postura de rupturas, como Jânio ou Collor. Era, paradoxalmente, um visionário realista. O visionário o impulsionou a transformar o País. O realista a ele indicou os limites da mudança. Foi assim que criativamente se valeu do existente para trazer o novo. Era um homem de ação que gostava de fazer coisas. Por isso não se circunscrevia ao expediente e foi, também paradoxalmente, um bem-sucedido planejador que conviveu bem com sua intuição de improvisador.

Foi um homem atento ao mundo, que nunca esqueceu suas origens de menino pobre em Diamantina. Daí seu nacionalismo destituído de xenofobia. Valeu-se com tranqüilidade do capital estrangeiro para promover o desenvolvimento do País, pois não tinha medo do diferente e do mundo e confiava no País. Não hesitou, no entanto, em romper com o FMI quando sentiu que isso era necessário para levar adiante seu projeto de governo e a inauguração de Brasília.

Tinha, simultaneamente, a "gravitas" do estadista, inclusive nos desafios e provações, e a alegria de um homem com transparente gosto pela vida. Foi uma personalidade generosa, sem ressentimentos e ódios. Teve a capacidade de conciliar, sob o signo da democracia e da legalidade, o "velho" e o "novo" numa direção positiva, reformista e bossa-nova. Por isso, merecidamente permanece, com sua confiança e energia, no imaginário político brasileiro.