Título: China - os segredos do seu crescimento
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

A China é a bola da vez da economia mundial, no bom sentido. Todos os holofotes se voltam para o seu elevado crescimento de 9,3% ao ano na última década, o potencial do seu mercado consumidor, o baixo custo da mão-de-obra e a sua capacidade de financiar o enorme rombo na conta corrente dos EUA. Uma pesquisa recente mostrou que a China é hoje o país mais entusiasmado com a globalização, seja pela atração de investimentos externos - visíveis a olho nu em qualquer passeio nas ruas de suas megalópoles -, seja pelo crescimento dos fluxos de comércio ou mesmo por sua insistência em ser reconhecida como algo que ainda não é: uma economia de mercado. A nova inserção internacional deste povo milenar resulta de injeções cavalares de capitalismo sobre um sistema ditatorial fortemente dirigista. O resultado dessa combinação sui generis impressiona e assusta países ricos e pobres pelo mundo afora. Uma das principais bases do deslocamento gradualista do dragão chinês se encontra na administração ferrenha das relações campo-cidade. Entre um crescimento vegetativo de 0,73% ao ano (no Brasil é de 1,24% ao ano) e um êxodo rural controlado, a população urbana da China cresce oficialmente, a cada ano, em 16 milhões de pessoas, o que dá mais de uma cidade de São Paulo inteira por ano! Desde 1980, a população rural fica estacionária ao redor de 800 milhões de pessoas, ao passo que a população urbana cresce a uma taxa de 4,2% ao ano, atingindo 500 milhões de habitantes. O crescimento do PIB per capita, que hoje atinge US$ 1 mil por habitante/ano, é acompanhado de uma sensível deterioração na distribuição de renda. Basta dizer que a renda urbana já é 3,4 vezes maior que a renda rural - era 1,8 vez em 1985. Esses dados indicam que a China dispõe de um estoque quase infinito de mão-de-obra no campo - que ainda responde por 50% do emprego total! -, sedenta para inchar ainda mais as grandes cidades, não fosse o represamento com mão-de-ferro imposto pelas autoridades governamentais. Pouca gente sabe que não há livre mobilidade de pessoas do campo para as cidades na China, já que o governo coíbe a migração ao não garantir direitos sociais àqueles que não têm permissão de trabalho. Além disso, o governo ainda detém a posse das terras - diga-se de passagem, extremamente limitadas na China, já que apenas 11% da superfície rural é agricultável, tendo a propriedade média somente 0,6 hectare -, que são então "emprestadas" às comunidades rurais, não podendo ser vendidas. Tais decisões só são possíveis sob um regime ditatorial rígido que desrespeita direitos humanos básicos como a liberdade de ir e vir e o direito de propriedade. O represamento da pobreza na zona rural subsidia o bem-estar da população urbana. Na realidade, a vasta pobreza rural da China incomoda muito menos do que a pobreza urbana, já que ela tende a escapar dos holofotes mundiais, hoje fixados nas enormes gruas que constroem fábricas, pontes e arranha-céus. Mas em que ponto o Brasil entra nessa equação? Ora, para crescer a China precisa de crescentes volumes de matérias-primas. Hoje são a soja, o petróleo, o ferro, o aço, o couro. Amanhã serão o milho, o algodão, as carnes, os lácteos, o etanol, a madeira e diversos minerais. O Brasil especializou-se em atividades intensivas em recursos naturais, que aqui ainda são extremamente abundantes. A China especializa-se em atividades intensivas em mão-de-obra, porém hoje já acalenta o sonho monopsônico de controlar as principais fontes disponíveis de matérias-primas no exterior, usando a poupança externa gerada por seu modelo estatal fortemente intervencionista, com imobilidade de capital e mão-de-obra e taxa de câmbio artificialmente desvalorizada. Os impactos de longo prazo do crescimento da China sobre a economia brasileira ainda são pouco conhecidos. O País carece de estudos quantitativos aprofundados, isentos de posições apriorísticas ufanistas, que identifiquem os ganhos líquidos que podem ser obtidos pelos dois países nas esferas bilateral e multilateral. As profundas mudanças que estão ocorrendo lá e aqui exigem uma reflexão madura sobre as ameaças e oportunidades de longo prazo, muito além das relações comerciais imediatas. Um bom exemplo foi o debate superficial que se deu em relação ao reconhecimento da China pelo Brasil como "economia de mercado", centrado na questão menor da dificuldade da aplicação de medidas compensatórias e direitos antidumping pelo Brasil. Entendo que o reconhecimento da China como "economia de mercado" tem implicações multilaterais que vão muito além do provável crescimento do comércio bilateral almejado no memorando firmado no último dia 12/11. O que está em jogo é o risco de crescente perfuração das frágeis regras do sistema multilateral nas áreas de subsídios governamentais, dumping, desrespeito a direitos de propriedade intelectual, manipulação de mercados por empresas estatais, comércio administrado por barreiras não-tarifárias e outras formas de discriminação. A falta de bons estudos faz esse debate ainda ser pobre e superficial, no Brasil. A maior proximidade depois das visitas recíprocas dos presidentes Lula e Hu Jintao e a intensa colaboração do G-20 em Genebra criaram imensas oportunidades para um debate mais maduro sobre os rumos dessas duas economias tão complexas e mutantes. Minha maior esperança é que consigamos obter resultados concretos em termos de um crescimento sustentado do comércio e dos investimentos bilaterais, de redução do oportunismo imediatista e do fortalecimento relações contratuais de longo prazo das nossas empresas e das instituições reguladoras dessas relações no Brasil, na China e no mundo. Marcos Sawaya Jank, livre-docente da FEA-USP, é presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).