Título: Estilhaços de 2005 no balanço de 2006
Autor: Pedro S. Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/12/2005, Espaço Aberto, p. A2

Ao final de 2006, as análises estarão voltadas para as expectativas do novo quadriênio (2007-2010), qualquer que seja o resultado das urnas de outubro. O interesse no tradicional balanço do ano será menor que o normal, substituído pelo balanço da herança que os quatro anos de Lula deixam a seu sucessor, ainda que este possa ser o próprio. Mas as retrospectivas que forem feitas haverão de registrar a extensão em que o curso de 2006, os termos do debate eleitoral e o resultado deste terão sido afetados pelos estilhaços políticos e econômicos de 2005.

Do ponto de vista político, 2005 ficará marcado como o ano em que o PT perdeu a condição de vestal que se auto-atribuiu durante anos: singular portador de uma impecável postura ética (a outros negada), detentor de uma supostamente superior tecnologia de governo (o famoso modo petista de governar), monopolista da verdadeira preocupação com o social (que outros nunca teriam tido). Esta visão - e, talvez, a arrogância em que se fundava e com a qual se expressava - se estilhaçou em 2005 e não será facilmente recomposta nos dez meses que faltam para outubro de 2006.

Será difícil porque a reflexão interna sobre as causas do desastre e as propostas de "refundação" do partido foram substituídas por um desesperado esforço de negação e atribuição de toda a responsabilidade a Delúbio. E, para espanto de qualquer pessoa informada, por um discurso que atribui "à direita" um complô para denegrir a imagem do PT - como se esta perda de imagem não tivesse fundamento algum nas próprias ações de petistas e aliados.

"Negação plausível" era a estratégia seguida pela CIA quando negava completamente as operações que deveras fazia: era importante negar, mas tão importante quanto a negação era sua "plausibilidade", isto é, que fosse minimamente crível. A ênfase era no plausível. Aqui a ênfase parece ser na negação, na denúncia do "denuncismo" e na força do desejar (e do acreditar) que tudo não tenha passado de um pequeno pesadelo, em via de ser esquecido.

A arrogante tentativa da nova direção partidária de enxovalhar reputações alheias para buscar convencer incautos de que todo mundo faz as mesmas coisas e nas mesmas proporções mostra que os estilhaços políticos de 2005 estarão conosco, infelizmente, ao longo da campanha eleitoral de 2006 - e adiante. É uma pena, porque a baixaria funciona como uma cortina de fumaça que torna muito mais difícil o entendimento dos reais desafios que o País tem pela frente. Em particular na área econômica, na qual a política do governo chega ao final de 2005 sob intensíssimo "fogo amigo", cujos estilhaços também estarão conosco em 2006 e, talvez, no quadriênio seguinte.

Vale lembrar, em momentos críticos como os que estamos vivendo, as palavras de Felipe González: "Na América Latina... nos falta consenso, um consenso estratégico que defina uma trajetória sustentável que perdure além das mudanças do governo, além dos mandatos de um Legislativo ou de um presidente. Não pode ser um consenso em torno de muitas questões, pois isso seria complicado. Mas um consenso em torno de três ou quatro questões que unem as pessoas... e desfrutam de um tipo de permanência que fortalece os países..."

A meu juízo, é fundamental avançar mais - e a hora é agora - na busca das convergências possíveis (para não abusar da palavra consenso, quase sempre inalcançável entre nós) na área econômica, exatamente para minimizar os custos e riscos na travessia de 2006, bem como no novo quadriênio.

Restringindo-nos à macroeconomia, há dois objetivos que não deveriam estar sujeitos a debates de natureza ideológica ou político-partidária. Primeiro, a necessidade de preservar a inflação sob controle como algo de interesse da maioria, porque significa preservar o poder de compra do salário do trabalhador. Este objetivo, no caso do Brasil de hoje, é alcançado melhor quando o regime monetário é o regime de metas de inflação.

Uma clara explicitação deste "consenso" (se existe) seria por todos os títulos desejável. As metas de inflação para 2006 e 2007 já foram definidas por este governo (4,5% ao ano, mais ou menos 2%), que também definirá, até junho do ano que vem, a meta para 2008. Se esta for a mesma, o País terá diante de si três anos de um mecanismo de coordenação de expectativas quanto ao curso futuro dos preços. Ao cabo dos quais poderá ter acumulado uma experiência de quase uma década e meia de inflação civilizada, conquista de vários governos e da sociedade brasileira.

É verdade, contudo, que no Brasil de hoje a efetividade de um regime monetário depende da credibilidade do compromisso de sucessivos governos com a responsabilidade fiscal. Este é o segundo e hoje, por larga margem, o mais fundamental dos objetivos macroeconômicos, em torno dos quais talvez pudesse ser possível tentar explorar convergências desde agora, pensando nos sinais que os debates - e o resultado - de 2006 darão para o quadriênio 2007-2010. A necessidade de compromissos críveis com a geração, ao longo dos próximos anos, do "esforço fiscal necessário" (do lado do gasto público corrente, seu nível, sua estrutura e sua eficácia) para pôr numa trajetória gradual, mas consistente, a redução da dívida como porcentagem do PIB.

Estes compromissos poderiam permitir, se percebidos como exprimindo convicção e entendimento por parte dos atores políticos relevantes, uma trajetória muito menos gradual de redução das taxas de juros nominais e reais, uma eventual futura redução da carga tributária como porcentagem do PIB e, por último, mas não menos importante, contribuiriam para criar melhores condições para o crescimento econômico sustentado da atividade econômica, do investimento e do emprego.

Estes objetivos exigem, diria Felipe González, um consenso mais amplo do que temos hoje sobre a importância de maior eficiência no setor público e de maior produtividade média no setor privado. Consenso que existe em muitos países que conosco competem e ao qual um dia chegaremos, espero que não muito atrasados.

Até lá. Feliz 2006!