Título: Além do institucional
Autor: Marco Aurélio Nogueira
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Pode-se pensar numa reforma política que não passe por uma reforma da política? Que não inclua uma sociologia do mundo e do país concreto em que se vive?

A pergunta parece envolta num jogo de palavras, mas é proposta para sustentar o seguinte raciocínio: precisamos reformar nosso sistema representativo - que faz água por todos os vãos e desvãos, ameaçando desmoralizar o Parlamento e afastar a população do centro das decisões -, mas não podemos fazer isso obcecados pela dimensão institucional e cegos para a dimensão ética e cultural da política.

Quando se fala em reforma política, entre nós, fala-se sempre em reforma das instituições políticas, principalmente do sistema eleitoral e partidário. É assim que o tema tem sido entendido e discutido. São muitas as propostas. Fala-se em voto distrital misto, listas fechadas, cláusulas de barreira, fortalecimento da fidelidade partidária, financiamento público das campanhas, contenção da propaganda eleitoral, ampliação do mandato presidencial e assim por diante. Isso sem mencionar as diferentes combinações entre elas.

Tal idéia de reforma é uma aposta na capacidade que têm as instituições de moldar uma comunidade, de fortalecer a representação política e de limitar ou ampliar as condições da luta democrática, bem como de proteger o Estado e melhorar as condições de governabilidade e de governança. Mas uma reforma desse tipo conseguiria fazer com que os políticos passassem a proceder a partir de cânones éticos superiores? Modificaria a mentalidade da "classe política", faria com que ela ficasse menos corporativa, mais altiva, menos suscetível às tentações da corrupção ou às seduções do Executivo?

O reconhecimento do poder que as instituições têm de ordenar uma comunidade tem sido uma das "cláusulas pétreas" da sociologia. Falar em sociedade é falar em ação, luta e contestação institucionalmente balizadas, isto é, submetidas a regras que organizam a competição e buscam evitar a destruição recíproca dos competidores. Os sujeitos - os indivíduos, os grupos, as classes, as organizações - batem-se entre si numa moldura institucional que os protege e os viabiliza (limitando, por exemplo, apetites desmedidos ou práticas criminosas), mas que também os controla e os cerceia. É no interior dessa moldura que se organizam a dominação política e a hegemonia intelectual e moral de um grupo ou de um conjunto de grupos sobre a população. Dependendo do sistema institucional, os sujeitos movimentam-se com maior ou menor liberdade. O totalitarismo é a expressão máxima de um sistema institucional sufocante e proibitivo. Num regime democrático (representativo e participativo), por outro lado, os sujeitos se fazem presentes o tempo todo.

Os sistemas, porém, não têm vida própria, ainda que possam funcionar com relativa autonomia e independência. Por trás deles há todo o mundo sociocultural: práticas, valores, interesses e relações sociais, bem como uma economia, uma correlação de forças, uma história concreta. O que funciona bem num país ou se acomoda de modo perfeito numa doutrina pode não funcionar nem fazer sentido em outra sociedade. Sem, portanto, considerar aquilo que está além do institucional, não há como projetar uma reforma que venha a vincular de modo distinto os sujeitos e suas condutas. Há, em suma, uma clara dialética entre ação e instituição, entre sujeito e sistema, sendo arbitrário concentrar a atenção apenas num dos termos dessa dialética.

As atuais instituições políticas brasileiras não estão mais respondendo à dinâmica social - às novas formas da modernidade tardia na periferia - nem sendo "funcionais" à governabilidade e ao processo político. Estão em alguma medida atrapalhando a sociedade, porque não conseguem configurar uma moldura confiável e eficiente nem fixar regras democráticas razoáveis. O sistema político apodreceu e se desconectou da sociedade: despolitizou-se. As instituições estão fazendo com que os cidadãos se afastem da representação e lhes minando a vontade de participar do governo da sociedade. A "classe política", por sua vez, não se mostra competente para direcionar e organizar o País. Apodreceu juntamente com o sistema político, por mais que seja integrada por indivíduos sérios e meritórios.

Há hoje no Brasil uma inversão de tendência. Antes, o sistema político mostrava-se mais avançado e "moderno" que a sociedade. Impunha-lhe um norte e a unificava, muitas vezes abusando da força, da autoridade e da ditadura política. Hoje, não é mais essa a situação. A sociedade mudou, diferenciou-se, ficou mais dinâmica e mais democrática, ganhou maior complexidade. Apresenta faixas enormes de miséria, de violência, de corporativismo, está carente de projetos que a unifiquem e lhe indiquem um futuro. Mas está viva, emitindo sons e sinais que não estão sendo traduzidos adequadamente pela política. Não ficou "melhor" que o sistema político, até porque é ela que o determina. Está somente pedindo mais, para o bem e para o mal. E as elites - todas elas, não apenas a elite política - parecem alheias a isso.

Uma reforma política é urgente e indispensável. Terá, porém, de ser também, simultaneamente, uma reforma dos hábitos, das mentalidades, do modo como se joga e se valoriza o jogo político. Não só mudança de regras, mas também mudança de valores e de concepções. As regras por si sós não mudam os hábitos. Além do mais, os reformadores - ou seja, a "classe política" - legislando, como têm feito, em causa própria, estão desqualificados para reformar de fato as instituições. Também precisam ser reformados.

Se for concebida para produzir frutos, a reforma institucional terá de ser também uma reforma cultural. Se não se articular com um projeto de educação cívica, de participação política e de qualificação do debate público democrático, servirá para pouca coisa.