Título: Conflito de interesses
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/10/2005, Nacional, p. A6

Se o PT quer mesmo esclarecer, pode começar por se aliar aos irmãos de Celso Daniel Gilberto Carvalho tentou, mas, a despeito da estudada veemência nas negativas, não conseguiu, na acareação de ontem na CPI dos Bingos, convencer que os irmãos do prefeito de Santo André assassinado em 2002, Celso Daniel, criaram uma história fantasiosa para impingir ao PT a falsa suspeita de que o partido estaria interessado na tese do crime comum para impedir que as investigações enveredassem para o campo da corrupção.

Como de resto ocorre sempre nesse tipo de confronto, cada qual manteve a sua versão e, no embate de palavra contra palavra, sobra ao exame de quem assiste o cotejo dos interesses por trás e a substância de cada argumentação.

O chefe de gabinete do presidente da República e a bancada governista presente à acareação trabalharam com fatores subjetivos. Distanciaram-se dos fatos e buscaram o tempo inteiro a desqualificação moral e sentimental de Bruno e João Francisco Daniel.

Praticamente acusaram os dois de aviltarem a honra e a memória do irmão em seu afã de esclarecer o assassinato, enalteceram o amor infindo do PT pelo prefeito, ressaltaram aspectos laterais, como a resistência da família em dar abrigo a uma filha de Celso Daniel, puseram no banco dos réus as relações fraternais, levantaram suspeitas a respeito de ingerências políticas na atitude dos irmãos, mas não forneceram um só argumento capaz de explicar as razões dos dois para se envolver em tão arriscada empreitada.

Em contrapartida, Bruno e João Francisco Daniel ativeram-se a fatos, datas, nomes, conversas, episódios, provas materiais e testemunhais registrados nos processos de investigação, deduções feitas a partir de relatos e dados técnicos, sempre observando a coerência, clareza e firmeza, mesmo quando tratados com desconfiança no tocante a seus propósitos.

Estes, fica difícil não concluir assim de forma aparentemente parcial, contribuíram sobremaneira para que os irmãos Daniel parecessem mais verossímeis em seus depoimentos.

A questão que se põe, ouvidas as partes, é a seguinte: qual a motivação dos petistas em desconsiderar a possibilidade de não ter havido um crime dito comum, e o que levaria os irmãos do prefeito a inventar uma história tão escabrosa e recheada de detalhes sobre queima de arquivo?

Gilberto Carvalho disse que não processou João Francisco por calúnia e difamação para não constranger a família, mas não se acanhou em fazê-lo ao longo de todo esse tempo de repetidas tentativas de desqualificar os dois irmãos, tratando-os como inimigos e não como parceiros de uma busca em direção à verdade.

Verdade que, se estiver ao lado da versão sustentada pelo PT, encerra o caso e livra o partido da suspeição de estar buscando se proteger das investigações relativas ao esquema de arrecadação ilegal de dinheiro por meio de propina cobrada a empresas prestadoras de serviços à prefeitura de Santo André.

Ao resistir à admissão de um outro caminho para esclarecer o assassinato, os petistas aceitam a suspeição baseada na existência de um interesse específico.

Já para os irmãos de Celso Daniel não há perdas nem ganhos em jogo.

Levanta-se uma dúvida a respeito da razão de Gilberto Carvalho para abrir a guarda diante de Bruno e João Francisco e, como ele acusa, falar abertamente sobre a existência de um esquema de arrecadação de dinheiro cujo reparte certa vez foi feito por ele ao então presidente do PT, José Dirceu.

O motivo, ficou claro na acareação, era exatamente o de alertar a família sobre a existência de implicações outras no crime e recomendar cuidado no trato das informações, a fim de não prejudicar o partido que nada tinha a ver com o crime em si, mas poderia ser prejudicado pela revelação de todas as circunstâncias acerca de sua ocorrência.

É provável que a CPI não venha a concluir nada a respeito do assassinato, cuja investigação foi reaberta na polícia de São Paulo. Mas é útil para mostrar um conflito entre o interesse de ampliar o leque de possibilidades e o desejo de restringir o cenário a uma versão contestada pelas evidências.

Aliança tática

O resultado da pesquisa Toledo & Associados mostrando que a maioria da população acha a corrupção do governo Lula "igual" à corrupção do governo Fernando Henrique Cardoso não serve de conforto ao PT.

Primeiro, porque, na mesma pesquisa, 40% consideram a devassidão maior agora e 15% avaliam como menor.

Além disso, os índices desfavorecem quem venceu as eleições por capitalizar a expectativa da mudança. FH perdeu, não conseguiu eleger seu candidato e, por isso, não é bom parâmetro de comparação para quem pretende ganhar as próximas.

O empate na realidade não é bom para nenhuma das duas forças pretensamente adversárias em boa situação.

E abre espaço para uma candidatura não comprometida com nenhum dos dois grupos já testados.

Por esta e algumas outras, não será de todo estranho se, em algum momento, petistas e tucanos vierem a fazer um movimento tático conjunto para mover obstáculos ao esperado embate entre PT e PSDB.