Título: Armas nucleares e o Prêmio Nobel
Autor: José Goldemberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

O Prêmio Nobel foi criado com recursos originados da fortuna de Alfred Nobel, engenheiro sueco que inventou a dinamite e com ela se tornou imensamente rico. Alfred faleceu em 1896 e cinco anos depois os primeiros Prêmios Nobel começaram a ser distribuídos. Ao longo do século 20, tornou-se o prêmio de maior prestígio de todos os tempos e influenciou muitos eventos naquela centúria. O testamento de seu criador especificou claramente que ele deveria ser atribuído "àqueles que realizaram os maiores benefícios à humanidade" nas áreas da Física, Química, Medicina, Literatura, Economia e Paz. Os recipientes do prêmio se tornaram, quase todos, figuras influentes nos seus países e as cerimônias de entrega do Nobel, em Estocolmo, pelo próprio rei da Suécia, são eventos marcantes.

De modo geral, o prêmio foi atribuído corretamente, se bem que algumas injustiças tenham sido feitas. Este ano, porém, a Academia Real de Ciências da Suécia acertou em cheio, atribuindo o prêmio da Paz à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e ao seu diretor-geral, Mohamed El Baradei.

A função desta agência, criada há mais de 30 anos, era promover os usos pacíficos da energia nuclear, mas aos poucos ela se foi tornando também a principal organização internacional a fiscalizar as atividades nucleares de quase todos os países, a fim de verificar que essas atividades não sejam desviadas para a produção de armas nucleares. A AIEA é o principal braço implementador do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), cuja finalidade é impedir a proliferação de armas nucleares.

O tratado foi assinado em 1968, após duras negociações entre as grandes potências que possuíam essas armas - EUA, URSS, Inglaterra, França e China - e os demais. O objetivo óbvio destas grandes potências era restringir a posse das armas nucleares a esse clube seleto. Os demais países, nos termos do tratado, deveriam renunciar à produção e posse dessas armas de destruição em massa, sem prejuízo do desenvolvimento da energia nuclear para fins pacíficos. Em troca, esses países poderiam receber assistência técnica. Configurava-se, assim, um novo tipo de "colonialismo".

O TNP foi visto desde sua origem como um tratado assimétrico e discriminatório, que dividiu o mundo em duas categorias: os que possuíam armas nucleares em 1968 e os demais países, aos quais era negado o acesso a elas.

Por esta razão, setores nacionalistas de vários deles se opuseram a aderir ao tratado, entre eles Índia, Paquistão, Israel, Argentina e Brasil. Para atenuar esse problema foi introduzido no TNP o artigo VI, que estabeleceu: "Os signatários negociarão, em boa-fé, medidas efetivas para o término a curto prazo da 'corrida nuclear' e o desarmamento nuclear sob controle internacional". Em outras palavras, a eliminação das armas nucleares em todos os países e seu cumprimento integral tornariam simétrico o tratamento de todos os países. Mas esse desarmamento não ocorreu, apesar da redução dos estoques de armas nucleares das grandes potências.

Após um período de otimismo de que isso ocorreria na década de 1990, houve um sério retrocesso nas reuniões que se realizam a cada cinco anos entre os signatários do TNP. A reunião de 2005 fracassou e o tema foi até eliminado na Declaração do Milênio da ONU, o que causou grande constrangimento ao secretário-geral, Kofi Annan.

O governo brasileiro postergou até 1998 sua adesão ao TNP. Nessa ocasião, o País já estava capacitado a assegurar sua independência tecnológica na área nuclear. Como o programa nuclear brasileiro é de caráter eminentemente pacífico, não existiam mais empecilhos para aderir ao tratado.

A agência internacional não teve sucesso em impedir que Índia, Paquistão e Israel desenvolvessem armas nucleares, o que contribuiu para um certo desprestígio. Mais recentemente, porém, a agência teve um papel importante em tentar impedir a invasão do Iraque pelos EUA aliados, sob o pretexto de que Saddam Hussein estava desenvolvendo armas nucleares clandestinamente. O dr. Hans Blix, diretor-geral que antecedeu El Baradei, chefiou uma missão da agência que demonstrou claramente que o pretexto não tinha base na realidade, o que foi confirmado depois pelos próprios investigadores americanos, após a invasão.

O esforço do dr. Blix não teve sucesso, mas El Baradei tem enfrentado com coragem um problema análogo no que se refere ao Irã, também acusado de promover programas clandestinos para produção de armas nucleares. As inspeções que a agência realiza em todos os países signatários do TNP - inclusive no Brasil - não confirmaram esses programas no Irã, que argumenta ter o "direito inalienável" de desenvolver energia nuclear para fins pacíficos.

A habilidade de El Baradei evitou até agora que as delicadas negociações com o Irã fossem levadas ao Conselho de Segurança da ONU, que poderia autorizar sanções contra aquele país ou ações militares unilaterais dos EUA. Devido ao seu papel, a renovação do mandato de El Baradei para um terceiro termo enfrentou a oposição dos americanos, que acabaram se conformando com sua permanência.

É neste quadro que a Academia Real de Ciências concedeu o Prêmio Nobel à agência e a seu diretor-geral, reforçando sua posição e independência. Esta atribuição, portanto, não só é justa como merecida, porque redundou em benefícios para a humanidade, evitando até agora, pelo menos, outra tragédia como a do Iraque.

A nosso ver, teria sido justo dividir o prêmio entre El Baradei e Hans Blix, o que teria tornado a mensagem da Academia Real da Suécia ainda mais clara. Ainda assim, foi uma atribuição do prêmio que honra o testamento de Alfred Nobel.