Título: Bactéria que causa úlcera rende Nobel
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2005, Vida&, p. A16

Cientistas estudam efeitos da eliminação da 'H. pylori' Médicos australianos descobriram que é a H. pylori, e não o stress, a causa de 80% das úlceras gástricas e 90% das de duodeno

Os australianos Barry J. Marshall, de 54 anos, e J. Robin Warren, de 68, venceram o Prêmio Nobel de Medicina neste ano por descobrirem - parte acidentalmente - que uma bactéria, e não apenas stress, alimentação e estilo de vida, causa úlceras no sistema digestivo. Eles dividirão o prêmio de US$ 1,3 milhão (cerca de R$ 2,9 milhões). Hoje, sabe-se que a Helicobacter pylori causa mais de 90% das úlceras de duodeno e 80% das gástricas. A descoberta, feita em 1982, mudou a forma de se ver a doença: de crônica, debilitante e passível de uma cirurgia que tirava parte do estômago, ela se tornou facilmente tratada com antibióticos.

Até então, achava-se que nada poderia crescer no estômago por causa do corrosivo suco gástrico. Mudar essa visão não foi fácil. Convencer a comunidade médica internacional exigiu tempo e dedicação dos dois pesquisadores. "Por cerca de cem anos, o padrão ensinado nas escolas de Medicina era que o estômago era estéril, então nenhuma bactéria poderia viver ali", disse Warren. "Quando disse que isso acontecia, ninguém acreditou." Seu colega chegou a consumir a bactéria propositalmente para provar a tese, desenvolvendo uma gastrite.

Coincidentemente, os dois estavam juntos, em um raro jantar, quando o telefone de Warren tocou. "Moramos em locais diferentes agora, mas nos vemos umas duas vezes por ano", afirmou. "Eu fiquei chocado. Quando ligaram, não podia acreditar que era realmente o comitê do Nobel."

"Obviamente, é a melhor coisa que pode acontecer para alguém na pesquisa médica", disse Marshall após receber a notícia. Ele atualmente trabalha na Universidade da Austrália Ocidental. Warren se aposentou em 1999 no Hospital Real de Perth. A dupla mantém um site (www.hpylori.com.au) com dados da pesquisa e detalhes sobre a H. pylori. Lá, também é possível ver bactérias estilizadas enfeitando a página e brincar com o "Jogo de Endoscopia do Gastroman" - algo que a mulher de Marshall, Adrienne, descreve como "seu terrível senso de humor".

Warren foi o primeiro a observar microorganismos curvos na parte inferior do estômago de muitos pacientes com úlcera, em 1979. Logo um jovem médico, Marshall, interessou-se pelo trabalho e começou a colaborar com a pesquisa.

Um século antes, patologistas alemães já haviam feito a mesma observação, mas na época não eram capazes de cultivar o micróbio in vitro. Os australianos experimentaram o mesmo fracasso, até que, no feriado de Páscoa de 1982, Marshall deixou sem querer uma amostra em seu laboratório. Quando retornou, cinco dias depois, notou que havia, sim, uma cultura a ser estudada. "Muitas grandes descobertas acontecem por uma combinação de acidente com uma mente preparada", disse Sten Grillner, outro membro do conselho da fundação.

Os dois demoraram quase dez anos para convencer o mundo da validade da descoberta. Na década de 90, uma série de antibióticos foi produzida para quase completamente curar a úlcera e prevenir que volte.

"O trabalho produziu uma das mudanças mais radicais e importantes dos últimos 50 anos na percepção de uma condição médica", disse Lord May, presidente da Sociedade Real da Grã-Bretanha. "Foi uma grande luta contra o conhecimento e o dogma prevalecentes, porque achava-se que a úlcera péptica era resultado de stress e estilo de vida", disse Staffan Normark, membro do comitê do Nobel.

Depois de aceita, a descoberta incentivou outros grupos a estudar micróbios como causa de doenças diversas. As pesquisas sobre a H. pylori continuam, voltadas especialmente a um quadro inimaginável antes do feito de Marshall e Warren: a conseqüência da ausência da bactéria (leia texto ao lado).

Entre metade e um terço da população mundial carrega a H. pylori no estômago, especialmente em países em desenvolvimento com más condições de saneamento. Contudo, a grande maioria não apresenta sintomas - apenas 10% dos infectados desenvolvem uma úlcera.

A cerimônia de entrega do Nobel acontecerá no dia 10 de dezembro, em uma cerimônia em Estocolmo, Suécia, que reunirá todos os premiados do ano.

UM MUNDO SEM A BACTÉRIA: O desenvolvimento de antibióticos para combater o Helicobacter pylori chama a atenção de cientistas para os efeitos de sua eliminação total.

Uma vez que sua transmissão está ligada a um bom sistema de saneamento básico, é de se esperar que a população da H. pylori caia à medida que o país melhore neste setor, algo observado em nações ricas. E, por conseqüência, o número de pacientes com úlcera diminua - como tem acontecido. Só que, ao mesmo tempo, cresce a incidência de algumas doenças do esôfago (tubo que liga a boca ao estômago), como refluxo e um tipo maligno de câncer.

Uma ligação entre a eliminação da bactéria e as moléstias ainda não foi provada, então quem foi tratado com antibióticos não vai ter um tumor necessariamente. Fatores ambientais e predisposição também entram na conta, como lembra o gastroenterologista Jaime Eisig, do Hospital das Clínicas da USP. "Além disso, só agora temos pacientes tratados para realizar estudos de longo prazo."

O infectologista Martin Blaser, da Universidade de Nova York, é especialista em H. pylori e estuda os efeitos da falta da bactéria no homem. "Para quem não tem úlcera, o benefício teórico é menor e há um custo biológico: uma maior propensão a doenças do esôfago", disse ao Estado. "Contudo, a vida é uma série de interações entre fatores de risco que determinam saúde e doença."