Título: Caixa 2, o 'doping' na política
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

A cada dia aumentam os valores envolvidos e o tamanho da lista de pessoas que receberam dinheiro vivo nesse escândalo que ora ocupa as atenções nacionais. Em contraste, permanece imutável a expectativa de que não haverá punições em escala correspondente. Entre os políticos já se fala de um acordão para limitar o número delas, e apenas sob a forma de cassações de mandatos, à maneira do escândalo que veio à tona em 1993 , conhecido como o dos "Anões do Orçamento". Também não há nada no cenário no que diz respeito a providências legislativas e executivas que coíbam eficazmente o financiamento ilegal de campanhas eleitorais, conhecido como caixa 2. No escândalo atual, esse esquema é também designado por um eufemismo, pois há quem a ele se refira como "recursos não contabilizados".

O caixa 2 é tratado pelos políticos como um mal menor, pois compartilham a equivocada visão de que sua generalizada prática os exime de maiores culpas pelo crime, numa atitude abençoada pelo próprio presidente da República e com qual a oposição, igualmente praticante do pecado, também compactua.

A prática também tem razões sistêmicas, cuja identificação é fundamental para coibir o mal. Não sendo distrital, o sistema proporcional que elege deputados e vereadores muito encarece as campanhas. Assim, favorece os candidatos mais endinheirados, cujos recursos extravasam os limites legais do caixa 1 e transbordam para o 2, seja por essa razão ou por interesse de doadores. Às vezes, o interesse é também de candidatos que querem engordar um terceiro caixa, o próprio. Nesse caso, a candidatura é também um projeto de enriquecimento pessoal.

Preparada pelos próprios parlamentares, a legislação sobre o caixa 2 eleitoral é leniente com a prática. Em tese, pode até haver a perda do mandato, mas os riscos são pequenos em face da natureza do sistema proporcional e da falta de meios da Justiça Eleitoral para coibir a prática. Com milhares de candidatos fazendo campanha por todo um Estado, fica difícil avaliar seus gastos; como a prática do caixa 2 é generalizada, e no sistema proporcional os candidatos disputam o voto sem maiores confrontos entre si, não há maior interesse de uns em denunciar abusos de outros.

Com a classe política assim conivente, o desgraçado cidadão mal informado e enganado é que sofre as conseqüências, conduzido a escolher mal seus representantes diante de candidatos turbinados com seus caixas 2 sem que o eleitor saiba disso.

Conforme revela o noticiário, a danosa visão do caixa 2 como um mal menor faz com que a ela se agarrem também aqueles que receberam jabaculês de todo tipo, inclusive com indícios do "mensalão". Se ainda resta um mínimo de seriedade "neste país", desta forma objeto de menções nada sérias por parte de seu primeiro mandatário, a Justiça Eleitoral terá de exigir dos que dizem tratar-se de caixa 2 a comprovação desse destino, com recibos e notas fiscais não forjados no seu conteúdo e nas suas datas, aplicando as penalidades correspondentes às omissões e aos exageros (há um limite por candidato), e a declarações fora do prazo já vencido. Por sua vez, a Receita Federal terá de se debruçar sobre as mesmas listas e tributar com multas os casos que se configurarem tipicamente como rendimentos não declarados ao Imposto de Renda.

Até aqui afirmei que o caixa 2 é um mal maior sem argumentar. Dada, entretanto, a difundida crença em contrário, cabem explicações infelizmente não óbvias "neste país" em que a desonestidade na política coexiste com a desinformação e o desinteresse do cidadão. E não são necessárias muitas palavras.

É um mal muitíssimo maior porque vicia aquilo que uma democracia tem de mais sagrado, o processo eleitoral, ao abrir espaço para abusos de poder econômico dos candidatos mais endinheirados, dinheiro esse que costuma vir de compromissos espúrios com interesses privados e/ou tendo como origem a corrupção na administração pública. Nesta, a gestão de contratos de obras, de publicidade e de serviços como a limpeza pública, em geral de valores vultosos, abre espaço para um tanto a mais que enriquece pessoas e campanhas. E é também um mal muitíssimo maior porque o caixa 2 prejudica os candidatos sem a mesma capacidade e falta de escrúpulos para levantá-los.

Em síntese, quando a classe política aceita e defende a idéia de que o caixa 2 é um mal menor, a pretexto de ser prática generalizada, está ignorando ou escondendo as graves distorções a que ele conduz. Nas suas últimas conseqüências, elas levam à conclusão de que os mandatos políticos do País são na sua maioria ilegítimos, porque assentados nessa prática. É como ganhar uma competição esportiva com o uso de "doping", pois recursos ilícitos, de físico-química financeira, são utilizados para vencer.

Sonhando com algo mais de seriedade "neste país", além da paupérrima que prevalece entre muitos de nossos políticos, a coibição da prática passa necessariamente pela reforma do sistema eleitoral, com adoção do voto distrital, da fidelidade partidária e do financiamento público de campanhas (ou pelo menos a limitação das doações apenas aos partidos, e não a candidatos), entre outras medidas.

E, do lado de cá, dos passivos cidadãos, é preciso acordar e reagir diante do fato de que há um sistema eleitoral corruptor e ilegítimo que contribui para produzir essa lista que com seus retratos e valores faz lembrar cartazes de bandidos procurados pela polícia.

A diferença é que, embora encontráveis, dificilmente os listados serão punidos de forma exemplar. Além disso, a trivialidade do "doping", reconhecida pelos próprios contendores, deixa a lista longe de completa.