Título: Corrupção e inelegibilidade
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2005, Espaço Aberto, p. A2

Tomei consciência direta da dimensão da crise que castiga o Brasil há uma semana. Estava na Europa. Lá, a biografia do presidente Lula ainda conserva forte magia. Poucos líderes mundiais podem, de fato, orgulhar-se de uma trajetória tão fascinante. O itinerário do metalúrgico que chegou à Presidência é, para os europeus, um passaporte para a glória. A vida, contudo, rasga os sonhos e impõe a realidade. Infelizmente. Demorou alguns dias, caro leitor, para cair a minha ficha. Não a da constatação do envolvimento do PT com o pior tipo de fisiologismo. Tal promiscuidade já era, e não de agora, uma triste realidade. O PT de resultados, em nome do poder (ou da governabilidade, segundo o jargão da nova política), mandou às favas qualquer escrúpulo de coerência programática. O que me espanta, no entanto, é a avassaladora força dos indícios, a ausência de desmentidos consistentes (afora os patéticos discursos do presidente e as óbvias negativas dos envolvidos, ninguém colou um caco sequer do que restou da cristaleira petista) e o avanço da onda de denúncias de corrupção rumo ao núcleo duro do Palácio do Planalto. Tenta-se, na oposição e na base de sustentação do governo, preservar o presidente da República.

Será possível? Tenho minhas dúvidas. E por várias razões. A primeira, por óbvio, é a dificuldade, quase impossibilidade, de separar as supostas ações do ex-'primeiro-ministro' José Dirceu do comando do presidente Lula. Ademais, é difícil imaginar que inúmeros envolvidos no escândalo, o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, por exemplo, se atrevessem a atuar sem o conhecimento, direto ou indireto, do presidente. A segunda razão, talvez menos perceptível a curto prazo, é que a sociedade brasileira, brutalmente frustrada e desencantada, não aceitará imunidades que, na prática, são o outro nome da impunidade. E é bom que seja assim. Não se pode combater seletivamente a corrupção. Penso, por isso, que, se comprovada a concordância ou a omissão do presidente da República, Lula, no mínimo, estará impedido de disputar um segundo mandato.

O exercício dos direitos políticos, entre os quais o de eleger e o de ser eleito, é prerrogativa fundamental da cidadania. A prática de certos crimes (a prevaricação, entre outros) tem como conseqüência, para além das sanções penais cabíveis, a inelegibilidade. Embora a lei vigente exija trânsito em julgado da sentença condenatória de um postulante a cargo público, a ética, fundamento essencial do Direito, não se contenta com tais limitações de colorido marcadamente positivista. Custa-me admitir que o presidente da República possa estar envolvido diretamente no episódio do mensalão. Mas os indícios de um comportamento leniente do chefe da Nação são, lamentavelmente, cada vez mais claros. E a sociedade, tão profundamente traída nas suas esperanças, não aceitará cambalachos, mesmo que sejam para preservar a imagem de um ícone partido.

O episódio reforça, sem dúvida, o dever ético da imprensa de promover uma ampla conscientização da relevância que os cargos públicos têm e de que pessoas absolutamente idôneas e preparadas os ocupem. Neste sentido, nós, jornalistas e formadores de opinião, devemos fazer uma serena, mas impiedosa autocrítica a respeito das nossas coberturas eleitorais. O esforço de isenção, prática elementar do bom jornalismo, não se deve confundir com a omissão. A sociedade espera uma imprensa combativa, disposta a exercer seu intransferível dever de denúncia.

Campanhas milionárias, promessas surrealistas e imagens produzidas fazem parte da promoção de alguns candidatos. Foi isso, somado ao desgaste de dois mandatos de FHC, o que levou o PT ao poder. O marketing, ferramenta importante para a transmissão da verdade, foi transformado em instrumento de ilusionismo. Sob a batuta de Duda Mendonça assistimos à agonia da política e ao advento da inconsistência disfarçada. Os programas eleitorais venderam uma bela embalagem, mas, de fato, foram paupérrimos na discussão das idéias. O PT, rigorosamente desprovido de qualquer plano de governo (basta pensar que sua única vitrine resultou da incorporação automática da política econômica do governo FHC), conseguiu, não obstante, emplacar a imagem da redenção social.

Cabe-nos, agora, aprofundar o processo de apuração. Não tenhamos receio das renovadas tentativas de atribuir à imprensa falsos propósitos golpistas. Trata-se de síndrome persecutória, patologia defensiva bastante conhecida. Políticos acuados (basta pensar no emblemático comportamento do ex-prefeito Paulo Maluf) declaram-se, freqüentemente, vítimas de supostas conspirações da mídia. As comparações com o governo de FHC também não colam. Na verdade, o ex-presidente, sobretudo no período da sua reeleição, não foi tratado com caviar pela imprensa brasileira. Apanhou. E muito. Eu, pessoalmente, sempre defendi a apuração das suspeitas então levantadas e me insurgi contra a Lei da Mordaça, uma clara tentativa de controlar a indocilidade da imprensa. Por isso, é falso e injusto lançar cortinas de fumaça para confundir a busca da verdade. É perigoso, por outro lado, convocar, seguindo o manual de instruções de Hugo Chávez, os movimentos sociais para a defesa de uma democracia pretensamente ameaçada. A democracia brasileira está sólida, graças também à contribuição do PT autêntico do passado.

Collor foi para casa. Sem traumas. Presidentes, mesmo carismáticos e supostamente bemintencionados, passam, mas as instituições ficam. O que está na agenda da opinião pública é a apuração de um gigantesco esquema de corrupção. Impõese, também, fazer a reforma política. Só ela, estou certo, garantirá o fim da indústria da corrupção. Este assunto será tema de um próximo artigo.