Título: Avanços da medicina reprodutiva criam outras famílias biológicas
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Vida &, p. A20

Os primeiros bebês brasileiros gerados em barrigas de aluguel estão soltos por aí com 7 ou 8 anos de idade. Sob o ponto de vista científico, é o final feliz do método do "útero de substituição", técnica da medicina reprodutiva que chegou ao País nos anos 90 e deu às mulheres a possibilidade de gerar filhos em ventres emprestados. Mas, sob o ângulo das configurações familiares, é apenas o começo. Unidos pela lembrança daquela barriga que durou nove meses, mães, pais e filhos que viraram personagens desses milagres científicos formam agora uma nova família biológica, uma gente que tenta adaptar seu afeto à revolução que a ciência provocou em sua vida. O Brasil tem cerca de 100 clínicas de reprodução assistida, 50 delas espalhadas pelo Estado de São Paulo. Todas oferecem a sorte grande de driblar a infertilidade com tipos de inseminação artificial ou fertilização in vitro. Pelos efeitos que provoca nos envolvidos, o útero de substituição é o método mais radical. Por R$ 14 mil, em média, os médicos implantam no ventre de uma mulher o embrião formado com o óvulo de outra. Depois da gestação, a mãe biológica pega seu bebê e leva para casa. A que gestou sai da maternidade de mãos vazias e feliz por ter ajudado.

No entanto, a partir do nascimento, as pessoas que participaram do processo passam a ter vínculos sem volta. "O útero de substituição é o mais complexo dos métodos de reprodução assistida. Outras técnicas, como a inseminação de mães solteiras, envolvem doadores anônimos. Nesse caso, não. A mulher conhece quem está gerando seu filho e isso traz uma relação emocional complicada", diz o especialista em Reprodução Humana Edson Borges Jr., diretor do Fertility Centro de Fertilização Assistida.

DRAMAS E ALEGRIAS

Todos aqueles enroscos emocionais das famílias estudadas por Freud parecem antiquados diante do que acontece na casa da advogada mineira Miete Peixoto de Melo. Depois de enfrentar seis abortos e uma gravidez prematura, ela foi salva de uma depressão profunda pela amiga e ex-empregada doméstica Aparecida Fernanda da Silva. Por meio do útero de substituição, Fernanda gerou em seu ventre a filha de Miete. Hoje - 12 meses depois do final feliz -, as duas mulheres, seus maridos e filhos acomodam-se em um agrupamento com dramas e alegrias que ainda esperam por definição nos manuais de psicanálise.

A menina Michele - filha de Miete, gerada por Fernanda - acaba de completar 1 ano. Assim que nasceu, ela foi entregue para a mãe biológica. "Eu não quis que ela fosse amamentada, para não criar um vínculo emocional", explica Miete. Ainda assim, a menina deixou marcas na casa onde foi gestada. Fernanda leva fotos da menina na bolsa e tem outro punhado espalhado pela casa. Sempre que pode, vai vê-la. " Durmo com ela e dou banho. Quando estou lá, ela só acorda quando eu levanto", orgulha-se.

O marido de Fernanda, Renato Antônio Moreira Souza, também alimenta seus apegos pela menina. " Quando ela estava na barriga da Fernanda, eu dava carinho, alisava e dizia que o papai estava ali. Sei que não sou o pai dela, mas fazia isso por acreditar que as crianças precisam de atenção nessa fase. Hoje adoro a menina. E ela me chamou de papai primeiro, antes do pai verdadeiro", conta ele.

A filha mais velha de Fernanda, Raíssa, de 7 anos, cresce muito próxima da menina que viu despontar na barriga de sua mãe. "Elas são muito unidas. A primeira palavra que a Michele falou foi o nome dela", conta Miete. Mas, nas últimas semanas, Raíssa tem chegado abatida em casa. "Na escola, as coleguinhas dizem a ela que eu sou uma mãe de aluguel, que emprestei minha barriga em troca de dinheiro", diz Fernanda. Raíssa vai mudar de escola.

NA BARRIGA DA VOVÓ

Autorizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1992, o método de útero de substituição é permitido para casos em que a mãe biológica tem contra-indicações médicas absolutas para engravidar. Ou não tem útero ou pode morrer ao enfrentar uma gestação. Pela lei, é preciso haver parentesco de até segundo grau entre a mulher que empresta o ventre e o pais biológicos - caso contrário, é preciso pedir autorização do CFM.

Em boa parte dos casos, uma mulher da família empresta a barriga. Na vida como ela é, significa o seguinte: durante a gravidez, todos os envolvidos precisam assimilar o imponderável de conviver com combinações como a própria mãe levando seu bebê no útero ou uma irmã gestando seu herdeiro.

Enquanto gerava a própria neta, a gerente comercial Elizabeth das Dores Sales, de 54 anos - também mineira -, repetia um mantra. "Eu falava para o bebê no ventre: é a vovó, você está na barriga da vovó. Sua mãe é a Veridiana, não sou eu", relata.

Primeiro caso no Brasil em que uma criança foi gerada pela avó, Bianca completou 1 ano na semana passada. Os pais, a engenheira de telecomunicações Veridiana do Vale Menezes e Menezes, de 31 anos, e o engenheiro civil Fabiano Sales de Menezes, de 30, encaram seu nascimento como uma dádiva científica. Veridiana nasceu sem útero. A sogra topou emprestar o seu. A mãe amamentou a filha e conseguiu 120 dias de licença-maternidade. Mas já voltou ao trabalho - e quem cuida de Bianca é a avó.

"Meu contato com ela é diário. Não posso nem descrever o tamanho deste amor. Posso ter 20, 30 netos, mas ela vai ser sempre especial", diz Elizabeth. Para ficar mais próxima da neta, ela se mudou para um apartamento perto do trabalho de Veridiana.

"Antes de fazer intervenções do gênero, fazemos testes psicológicos entre os envolvidos. Mas está claro que casos com o de útero de substituição tornam possíveis relações familiares nunca antes imaginadas", afirma João Pedro Junqueira Caetano, diretor da Clínica Pró-Criar/Mater Dei, responsável pela fertilização de Bianca e Michele.

NOVOS NÚCLEOS

Nos últimos anos, as principais mudanças nas famílias que os sociólogos gostam de chamar de monoparentais - aquelas que estão divididas no clássico pai, mãe e filho - se deram por motivos comportamentais. Divórcios, segundos e terceiros casamentos, união de homossexuais desenharam outros modelos de núcleos familiares. Com as barrigas de aluguel, a medicina reprodutiva também entra na parada. E já há os casos de famílias que acumulam os dois tipos de mudanças.

Mãe de dois filhos, a consultora de vendas Sarita Lopes Vidal enfrentou ao mesmo tempo um divórcio e uma gestação para outra mulher. Engravidou para ajudar o irmão, o comerciante Maurício Lopes Vidal, e a cunhada, Sandra Regina Cezarino Lopes - que precisou retirar o útero comprometido por miomas. Em casa, seus dois filhos viam o desfile de novos comportamentos domésticos. Fora dela, seu irmão digeria as mudanças."Eu fiquei entre duas mulheres grávidas de mim - uma era a minha, outra era a minha irmã. E, como o tratamento é caro, ainda tinha medo de perder a chance daquela vez", lembra Maurício.

Com uma gestação no meio, a família ia administrando o inadministrável. "Enquanto estava grávida, sentia o tempo inteiro que aquele bebê não era o meu filho. Mas, quando entrei na sala de parto, fiz a Sandra me prometer que não teria ciúmes do menino comigo", conta Sarita. "Quando tudo terminou, a vida da gente mudou não só por causa da chegada do bebê, mas porque hoje nós duas temos uma ligação muito forte. Mas ela é a tia. Eu sou a mãe", diz Sandra, segurando Ramon, seu menino de 10 meses.

A rapidez com que o método da doação temporária de útero provoca mudanças promete ser um prato cheio para a psicanálise - e já se transformou em desafio jurídico. Pela legislação brasileira, mãe é a mulher que engravida. Por isso, as crianças que nasceram por meio dessa técnica costumam ficar meses e até anos sem registro - e dependem da autorização de um juiz para ter o nome de suas mães biológicas. Há casos de casais que precisam fazer exame de DNA antes de conseguir a certidão.

Apesar das mudanças em curso, os envolvidos continuam achando que vale tentar. "Há quem defenda que, por suas conseqüências, o método é desumano. Mas não se pode perder de vista que ele traz vida e alegrias", argumenta o médico Ricardo Baruffi, do Centro de Reprodução Humana Sinhá Junqueira, em Ribeirão Preto. Atualmente, quatro famílias se submetem ao método na clínica. Será mais munição para os sociólogos do futuro.