Título: Afinal, o governo mínimo
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2005, Economia, p. B2

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva instaurou no Brasil o sistema sonhado pelos ultraliberais: o governo mínimo. Talvez seja uma versão diferente daquela defendida pelo economista Friedrich Hayek e pelo filósofo político Robert Nozick. Talvez seus gastos e sua receita sejam mais parecidos, pela dimensão, e não pelos efeitos sociais, com os de economias nórdicas. Talvez alguns de seus projetos, como o da reforma universitária e, já superado, o da criação do Conselho Federal de Jornalismo, sejam mais compatíveis com sistemas autoritários. Mas, apesar desses detalhes, o adjetivo é merecido, pelo desempenho recente do presidente e de alguns de seus principais auxiliares. Que outro governo, senão um minúsculo, suspenderia uma reforma ministerial, depois de muitos meses de discussão, por causa das pressões do deputado Severino Cavalcanti, que nem mesmo poderia fazer ameaças em nome de seu partido? Qual a dimensão de um governo que, depois dessa retirada vergonhosa, ainda emite uma nota oficial para lembrar que o presidente detém, pela Constituição, o direito de nomear e demitir ministros?

Afirmar, como vários analistas, que o presidente usou a investida de Severino Cavalcanti para se livrar de um problema, porque não era capaz de concluir a reforma, não melhora o retrato. Apenas mostra um governo incapaz de realizar com o mínimo de competência uma das funções orgânicas mais importantes, a auto-renovação.

O deputado Cavalcanti não tem culpa de nada. Apenas teve oportunidade para realizar mais amplamente sua vocação. Teria permanecido como figura folclórica do chamado baixo clero se um governo mínimo não criasse condições para sua conversão em presidente da Câmara dos Deputados, com direito de exercer a Presidência da República na ausência do chefe do governo e do vice.

Consumada essa incrível trapalhada, que outro governo seria surpreendido, em seguida, pela votação de um projeto de reforma da Previdência contrário aos interesses de seu propalado ajuste fiscal? O estrago será consertável no Senado, se não houver novo cochilo. Quem garante que não haverá?

Isso não é tudo. Nesta altura, é duvidosa até a propalada austeridade fiscal, que deu ao governo credibilidade para atravessar os primeiros dois anos sem grandes traumas.

Não se trata apenas de registrar o indisfarçável e desnecessário aumento de gastos. Trata-se também de assinalar que o governo, além de resistir menos que o necessário às pressões por maiores despesas, contribui ativamente para baixar os padrões da gestão pública. Para proteger uma companheira ex-prefeita e para conter a reação de governadores e prefeitos, o presidente da República permitiu que se pusesse em risco uma das leis políticas - e não apenas financeiras - mais importantes e mais inovadoras dos últimos 20 ou 30 anos.

Deixou afrouxar-se até 2016 o ajuste que os governantes de Estados e municípios deveriam realizar por vários anos. Qual a dimensão de um governo que assume risco tão importante, de forma tão inconseqüente, apenas para manter o companheirismo partidário?

Amizade e companheirismo não fazem um governo. O mais provável é que dificultem as boas decisões e a definição de objetivos e de estratégias. Num governo guiado pelos critérios de competência e eficiência, a maior parte dos ministros do presidente Lula teria sido há muito substituída.

A reforma ministerial, em discussão desde o ano passado, teria sido uma oportunidade para fortalecer o Executivo e nivelá-lo por cima. Mas o presidente se deixou prender em duas armadilhas: a preocupação prematura com a eleição de 2006, que transformou a reforma num mero loteamento de cargos, afinal interrompido, e a fidelidade a companheiros que só atrapalharam.

Nesse processo demorado e malsucedido, ministros foram queimados e a coordenação política, já precária, se esfarelou. A gestão federal ficou prisioneira de um presidente sem decisão. O núcleo da política econômica, único fundamento da credibilidade acumulada nestes dois anos, foi preservado, mas não sem algum desgaste. Se o presidente, que tanto gosta de bonés, não puser na cabeça o único que importa, o de chefe do Executivo, a credibilidade se consumirá e o governo será cada vez menor diante de problemas cada vez maiores. O grande risco é que o presidente, diante dos novos desafios, cometa agora os erros econômicos que muitos previam para o início do mandato. *Rolf Kuntz é jornalista