Título: A biologia sintética, o bem e o mal
Autor: Oliver Morton
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Vida, p. A17

Novas tecnologias trazem para a área grandes possibilidades científicas, comerciais e destrutivas, levantando questões éticas e morais.

NOVA YORK - No início do século 19, a ciência química reconhecida dizia que os compostos orgânicos estavam além dos poderes criativos do laboratório - eles só podiam ser forjados pelas forças dos seres vivos. Então, em 1828, Friedrich W¿hler descobriu que a uréia, um composto orgânico de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, podia ser produzida com ingredientes não orgânicos. Seus sucessores perceberam que essa nova química sintética podia produzir não só as moléculas orgânicas usadas na natureza, mas moléculas orgânicas com as quais a natureza jamais sonhara. Os corantes artificiais se tornaram uma grande indústria; na 1.ª Guerra, foi a vez dos gases venenosos. De plásticos a detergentes, tecidos e fertilizantes, a química sintética avançou para mudar o mundo.

Uma transição similar ocorre agora na biologia. Até recentemente, os biólogos trabalhavam com os componentes encontrados na natureza. Podiam transferir os genes de um ser vivo para outro, mas o faziam recortando e colando os originais da natureza, assim como um editor move pedaços de texto clicando e arrastando. Agora, estão usando tecnologias que lhes permitem escrever genes e genomas a partir do zero, alterando e superando o vocabulário da natureza. As possibilidades científicas, comerciais e destrutivas dessa biologia sintética são tão grandes quanto as outrora oferecidas pela química. Mas se farão sentir muito mais depressa, levantando questões éticas e morais.

A habilidade de projetar genomas e seus componentes encerra grande potencial. No fim de 2004, a Bill & Melinda Gates Foundation doou US$ 42,6 milhões a um projeto da Universidade da Califórnia em Berkeley que está reescrevendo genomas de bactérias num esforço para produzir a droga antimalária artemisinina a uma pequena fração do custo atual.

As companhias que sintetizam genes sob encomenda - envie-lhes uma seqüência e um número de cartão de crédito e elas lhe enviarão um gene pelo correio - parecem ter futuro promissor. Para manter a segurança, elas comparam as seqüências pedidas com dados de genes patogênicos, a fim de garantir que ninguém produza algo sórdido. Mas, à medida que o preço da tecnologia cair e sua disponibilidade aumentar, a possibilidade de alguém sintetizar algo como a varíola crescerá mais. As seqüências genéticas dos agentes patogênicos, como ocorre com todos os outros organismos, estão se empilhando na internet.

MEDO

O panorama assusta. Mas o medo precisa de alguma perspectiva. Primeiro, a capacidade de produzir armas biológicas com tecnologias de recortar e colar já está disseminada: doenças podem facilmente ser manipuladas para a introdução da resistência a drogas. Isso não é animador, em especial porque ainda não há uma estratégia coerente para nos defender dessas armas.

Mas a biologia sintética também pode trazer mais segurança. No mês passado, pouco depois de a revista Nature ter publicado um artigo de George M. Church, da Escola de Medicina de Harvard, e Xiaolian Gao, da Universidade de Houston, sobre uma técnica que facilita bem a síntese genética, sua publicação irmã Nature Methods trouxe um ensaio de Rob Carlson, do Instituto de Ciências Moleculares de Berkeley, sobre uma nova tecnologia conhecida como girino. Girinos são pedacinhos de proteína com cauda de DNA sintético que prometem tornar muito mais fácil a detecção de todos os tipos de moléculas biológicas, incluindo novos agentes patogênicos que poderiam ser usados num ataque.

Esses cientistas estão cientes das implicações de seu trabalho para a segurança. O mesmo vale para o governo. A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa do Pentágono apóia várias iniciativas de biologia sintética. Tem havido alguma discussão sobre como os perigos inerentes a essa tecnologia podem ser contidos, mas não se chegou a um consenso.

A essa altura, a coisa mais importante a fazer é ampliar a discussão e estimular o debate entre os cidadãos. Mas, para isso, os próprios biólogos precisarão de mais disposição de pensar e falar sobre as novas tecnologias.

Os biólogos tendem a supor que seus estudos são benéficos; acham que conhecer como a vida funciona é a fundação do progresso médico. O lado negro de sua força - o potencial de interrupção e subversão da vida que emerge da pesquisa biológica - raramente ganha sua atenção. As maneiras de disseminar a consciência sobre esse perigo vão de um juramento hipocrático para os pesquisadores a cursos melhores de ética. Como em grande parte da educação sobre o perigo, porém, os melhores resultados virão de intensos diálogos com os colegas e essas preocupações precisam ser o motor das conversas tanto quanto devem estar nos currículos.