Título: Abertura de arquivos começa por 750 cassações
Autor: Vannildo Mendes
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2005, Nacional, p. A6

O governo vai anunciar nos próximos dias a abertura oficial dos primeiros lotes de arquivos secretos da ditadura militar. A liberação começará por três áreas sensíveis, entre elas o lote, até agora inédito, de documentos do Conselho de Segurança Nacional que tratam das 750 cassações feitas por atos de exceção. A informação foi dada, em entrevista ao Estado, pelo ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial de Direitos Humanos. "Observadas as ressalvas constitucionais, que tratam da segurança do Estado e da dignidade das pessoas, a ordem do governo é abrir tudo", afirma ele. Nessa primeira etapa, também estão sendo catalogados para abertura os arquivos da Agência Brasileira de Informação (Abin), que incluem o acervo do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) e os documentos da Comissão Geral de Investigação (CGI). Criada pela ditadura para punir administradores corruptos e malversadores de dinheiro público, a CGI acabou usando suas atribuições para punir adversários políticos do regime, atingidos por inquéritos sumários, sem direito de defesa, e depois, com base nesses inquéritos, processados pelo Poder Judiciário.

Um prédio de 170 metros quadrados, pertencente ao Arquivo Nacional, no Setor de Indústrias Gráficas, em Brasília, já foi preparado para receber todo esse material e classificá-los em lotes por assunto, sob coordenação direta do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Armando Jorge Félix. Depois de catalogado e classificado para ser digitalizado, o material será transferido para a sede do Arquivo Nacional, no Rio, onde ficará disponível para consulta pública.

Nilmário explica que haverá restrições à consulta pública quando se tratar de material que possa, de alguma maneira, ameaçar a segurança do Estado e dos cidadãos, ou quando violar a intimidade, o direito à privacidade e a honra de pessoas, como é o caso dos processos da CGI. As pessoas que foram alvo das investigações ou seus familiares serão consultados antes de dar vista de seus documentos a outras pessoas.

O ministro informou que, para facilitar as consultas - inclusive via internet - o governo vai criar um centro de referência sobre violações de direitos humanos durante o regime militar. Nos últimos meses, ele debateu o assunto com especialistas do mundo inteiro, inclusive com dirigentes da Unesco e com o sociólogo francês Alain Touraine (amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso), que lhe deu um conselho: "O povo tem direito à memória e é fundamental dar voz às vítimas". Eis a entrevista:

O que significa e como vai funcionar o centro de referência sobre violações de direitos humanos no regime militar?

Com a aprovação da MP-228, criamos as condições legais para a abertura de arquivos. Estabeleceu-se o prazo máximo de 30 anos para o sigilo. Então os arquivos relativos a direitos humanos durante o período da ditadura militar devem ser abertos. O que ocorreu até 1975 já tem 30 anos e pode ser aberto. A Casa Civil pediu que sejam remetidos os arquivos para serem entregues ao Arquivo Nacional. Nessa primeira leva, em andamento, vamos ter a transferência de documentos da Abin, do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Geral de Investigação (CGI). Mas haverá outros documentos também.

O que, efetivamente, pode ser aberto e o que não pode?

A linha do governo é abrir. O direito à verdade e à memória é um direito fundamental da sociedade e da cidadania. Fechar, tornar ultra-secreto, sigiloso ou ampliar o prazo de sigilo, só se forem documentos amparados por ressalvas da Constituição, que representarem ameaça à segurança da sociedade e do Estado, à vida privada, à honra e à dignidade das pessoas.

Os documentos vão ficar disponíveis no Arquivo Nacional. Para que servirá o centro de referência?

Não basta abrir documentos. O Brasil já vem abrindo documentos há muito tempo. Na década de 80, a Arquidiocese de São Paulo copiou todos os processos no STM e fez o Tortura Nunca Mais. Chegou a 70 mil vítimas e aos nomes de centenas pessoas que participaram de torturas. Em 1992, os arquivos do DOPS foram devolvidos para os Estados e abertos. Só que praticamente ninguém sabe o que eles têm, nem como obter acesso a eles, se precisar de uma informação. O centro de referência é para isso. Ele vai dizer que arquivos estão abertos no Brasil, qual a norma para acessar e como as pessoas podem usar a internet para pesquisar nos arquivos estaduais. Vamos harmonizar as normas de acesso. Não é um memorial nem um novo arquivo. Queremos valorizar as instituições existentes no País. É uma espécie de arquivo dos arquivos.

O que o centro vai fazer, além de facilitar as pesquisas pela rede?

Ele será sediado em Brasília, mas será um centro ativo, como os museus modernos. Vai fazer exposições itinerantes. Nós vamos firmar uma parceria com o MEC para republicar livros sobre a pressão feita durante o regime militar, que ficaram perdidos no tempo. Esses livros estarão acessíveis na internet, de graça. Vamos recuperar a arte cênica, a filmografia, o material proibido pela censura, e disponibilizar tudo isso para as pessoas. Há um mundo de informações. Nós vamos também resgatar a história oral, ouvindo as vítimas.

Vai também pesquisar e recolher outros documentos onde eles eventualmente estiverem?

Nós vamos financiar o resgate dos 50 microfilmes e de todos os originais do projeto Tortura Nunca Mais. Por questão de proteção, eles foram guardados numa universidade dos EUA. O centro de referência vai ajudar a Universidade de Campinas a digitalizar esses microfilmes. Ao longo dos anos, junto com os Estados, nós vamos colocar todos esses arquivos em rede e eles poderão ser acessados por via eletrônica. Vamos fazer o mesmo com os arquivos privados, do CPDOC/FGV e uma infinidade de outros. Por fim, teremos uma base de dados para saber que informações você pode acessar no Brasil - o que existe no Arquivo Nacional, nas universidades, na Fundação Joaquim Nabuco, nos grupos de Tortura Nunca Mais, nas Divisões de Segurança e Informação (DSIs) dos órgãos públicos, os braços do extinto SNI nas universidades, na presidência, nos ministérios.

Para estruturar o projeto, o senhor buscou conhecimento fora do País?

Sim. Agora mesmo tive conversas na Europa sobre o tema. Uma delas com Alain Touraine. Ele me disse que é fundamental o Estado mostrar os documentos, a prova histórica, porque o povo tem direito à memória e é importante dar voz às vítimas. Nós temos dado voz às vítimas, mas não de uma forma ordenada, para traçar um painel e encerrar o assunto. Nós temos 60 mil requerimentos de anistia, muitos deles relativos a violações graves de direitos humanos, torturas inclusive. Mas isso foi feito apenas para instruir um processo de indenização. Dar voz às vítimas é um mecanismo válido de recuperar a verdade e a história. Como se saberia do holocausto, se as pessoas eram incineradas? São as vítimas sobreviventes e as famílias que estão contando e recuperando a história até hoje. Até porque os criminosos destroem documentos e provas que possam incriminá-los, mesmo quando acobertados por lei de anistia.

Qual o critério para acesso aos documentos?

Nós queremos promover esse acesso de forma absolutamente tranqüila, não revanchista, porque isso tem de fazer parte da consolidação da democracia e dos direitos humanos no nosso País. Se não tivermos a difusão da verdade e da memória, muita gente perderá a idéia do que é uma verdadeira ditadura. Por exemplo: o Museu do Holocausto é importante porque já estavam surgindo ondas de neonazismo e neofascismo na Europa. As pessoas não lembravam mais o que realmente significaram o nazismo e o fascismo.

O senhor acha que esse efeito vai se repetir no Brasil?

Nós também temos muitos saudosistas da ditadura. Aqui existem jovens que, por desconhecimento, respondem em pesquisas de opinião que trocariam a democracia pela ditadura se recebessem alguns benefícios materiais. Só quem não viveu uma ditadura é capaz de dizer isso. Eu estou falando de jovens que não conhecem a história, de gerações posteriores à repressão. Mas em geral, no Brasil, direita, centro e esquerda convergiram para a defesa da democracia, embora tenham idéias diferentes sobre ela. O longo regime repressivo de 21 anos desgastou tanto a idéia de ditadura que houve uma convergência democrática.