Título: Ataque ao Irã uniria país, alerta estudioso do Islã
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Internacional, p. A18

Um dos mais conceituados especialistas em Islã nos Estados Unidos, o antropólogo paquistanês Akbar Ahmed, não vê conflito entre sua religião e as aspirações democráticas de árabes e muçulmanos. Mas ele tem dúvidas sobre se o pleito do último domingo no Iraque fará avançar a causa da liberdade. E teme uma escalada americana na região, desta vez contra o Irã, o que a secretária de Estado, Condoleezza Rice, não descartou, em declarações que fez em Londres na sexta-feira.

Autor de vários livros, um dos quais serviu de base para a serie Living Islam, produzida pela emissora britânica BBC, Ahmed recebeu o Estado na American University, onde dirige o Centro de Estudos Islâmicos e ensina relações internacionais.

Como as eleições no Iraque são vistas nos mundos muçulmano e árabe?

São vistas como o tema complicado que são. Esta é a primeira vez que houve uma eleição no mundo árabe não patrocinada por uma ditadura civil ou militar. Os iraquianos que saíram para votar merecem nossa admiração e respeito.

A eleição ocorreu com partes do país em estado de guerra civil e com a maioria dos iraquianos vendo o principal patrocinador da eleição como uma força de ocupação. Mas as pessoas na região têm grandes dúvidas sobre as conseqüências.

As eleições criarão condições para que surja uma democracia genuína ou levarão a uma guerra civil?

Cedo ou tarde, o processo da escolha dos governantes tem de começar. Com muitas imperfeições, ele foi iniciado no Afeganistão e existe em outras partes do Islã. Por exemplo, em Bangladesh e na Indonésia. Nesse sentido, o que aconteceu no Iraque no domingo passado é positivo. A aspiração por mais liberdade e mais democracia é real em todo o mundo islâmico. O que prevalece, porém, é um profundo sentimento de frustração, uma mentalidade de povo que se sente sitiado. Em busca de uma explicação, eles culpam em primeiro lugar os próprios governantes, mas também o superpoder que está por trás deles. Um bom exemplo é o Egito de Hosni Mubarak, que governa há 24 anos com o respaldo de bilhões de dólares em ajuda americana e, agora, quer estender seu mandato por mais seis anos.

Os árabes e muçulmanos que querem democracia em seu países compram o discurso pró-democracia de Washington?

A visão de consenso no Islã e no mundo árabe é que o papel que os EUA desempenham não é positivo. As dúvidas derivam não apenas da associação de Washington com as autocracias da região - Egito, Paquistão, Usbequistão, Turcomenistão, Arábia Saudita. As notícias sobre o tratamento discriminatório que os americanos muçulmanos recebem nos próprios EUA chegam instantaneamente e alimentam o sentimento negativo. O paradoxo está em que os EUA não têm desígnios imperialistas no sentido que a Inglaterra e a Franca tiveram. Mas têm atuado de uma maneira neo-imperial que nem os americanos nem os muçulmanos sabem definir direito, mas que reforça o ceticismo sobre as intenções americanas.

Alguns analistas no mundo árabe chamam a atenção para o fato de que as eleições de domingo passado no Iraque resultarão no primeiro governo controlados por muçulmanos xiitas no mundo árabe e os autocratas da região, todos sunitas, usarão esse fato para retardar reformas.

Os autocratas usarão o espantalho xiita como usariam qualquer outro espantalho para prolongar seu poder. Não creio que esse argumento tenha relevância, até porque o governo xiita não é exatamente uma novidade no mundo árabe.

A dinastia dos Fatimid, que mandou no Egito entre os anos 969 e 1171, era parte de uma minoria xiita. A evolução desses regimes não será determinada pelo passado, mas pelo futuro. O futuro está chegando rapidamente e chama-se Irã.

As declarações recentes de George W. Bush e de Condoleezza Rice não descartam a hipótese de um confronto com o Irã.

Washington terá de decidir rapidamente até que ponto deve alimentar a tensão com Teerã. O Irã não é o Iraque. Os iranianos são persas, descendem de uma civilização milenar e formam uma sociedade bastante homogênea. Tornaram-se muçulmanos xiitas, mas possuem uma identidade nacional forte e distinta, que inclui sua religião.

O atual governo americano não compreende isso porque pensa sobre o Irã em termos de Iraque. O presidente Bush conclamou os iranianos a rebelarem-se contra o governo, em seu discurso de quarta-feira, e prometeu-lhes o apoio americano.

Esse argumento funciona no Iraque, onde a sociedade é dividida e havia um ditador que oprimia a maioria xiita. A sociedade iraniana tem suas diferenças internas, mas se unirá instantaneamente diante de um intervenção do exterior.

Nesse caso, como reagiria o governo inevitavelmente xiita de Bagdá que surgirá das urnas.

Seria certamente negativa, tornaria ainda mais complicado o cenário criado pelas eleições iraquianas e aumentaria o problema de credibilidade dos EUA entre muçulmanos. Uma ação americana ou de Israel contra o Irã provavelmente precipitaria o fim das autocracias no Paquistão e na Arábia Saudita.