Título: A armadilha da dívida
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2005, Editoriais, p. A3

O Município de São Paulo tem uma dívida de R$ 31,5 bilhões, equivalente a 244% da sua receita corrente líquida. Para atender às exigências da resolução do Senado que fixou o limite de endividamento dos municípios em 120% da receita líquida e estabeleceu um cronograma de ajuste para as prefeituras que ultrapassarem aquele limite, a Prefeitura de São Paulo teria de fazer pagamentos no valor de R$ 7 bilhões até o dia 30 de abril. Depois disso, teria de liquidar 1/15 do excesso da dívida, a cada ano, até atingir os parâmetros adotados pelo Senado. Tendo uma receita anual de pouco mais de R$ 13 bilhões, dos quais só 20% podem ser contingenciados, é óbvio que o Município não tem condições de amortizar R$ 7 bilhões no final do quarto mês de uma administração que herdou dívidas de curto prazo de cerca de R$ 2 bilhões e, por isso, teve de impor a seus credores um cronograma unilateral de pagamentos que muitos estão chamando de calote. Teria sido possível começar a reconduzir a dívida municipal ao limite fixado pelo Senado se a prefeita Marta Suplicy tivesse feito de sua administração um modelo de austeridade fiscal. Mas ela preferiu gastar o que a Prefeitura tinha e não tinha, na inútil tentativa de se reeleger.

Cabe, portanto, ao prefeito José Serra encontrar uma solução para um problema que, se não for equacionado a tempo e satisfatoriamente, pode sujeitar a cidade de São Paulo à penalidade prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal. Os municípios que excedem o limite de endividamento e não tomam as providências necessárias para o ajuste, nos prazos determinados, ficam proibidos de receber transferências voluntárias da União. Em tempos normais, essa punição teria pouco mais que efeito moral para a cidade de São Paulo, que sempre recebeu minguados recursos federais, transferidos espontaneamente, exceto quando esteve sob o governo petista de Marta Suplicy e teve tratamento privilegiado do governo petista do presidente Lula. Agora, no entanto, dada a penúria dos cofres municipais, o prefeito José Serra não pode se dar ao luxo de dispensar as transferências voluntárias, por menores que sejam.

No começo da semana, o prefeito esteve em Brasília, discutindo com parlamentares as possíveis soluções para o caso da dívida paulistana. Marta Suplicy, no início de sua administração, pressionou o governo federal para que alterasse a Lei de Responsabilidade Fiscal, permitindo a renegociação do contrato que consolidou a dívida. O presidente Lula, apoiando sua equipe econômica, não admitiu o alvitre, que na prática destruiria o rígido regime de austeridade fiscal a que se submeteram Estados e municípios desde 2001. O prefeito José Serra, em cuja equipe de governo trabalham alguns dos principais idealizadores da Lei de Responsabilidade Fiscal, nem pensa em alterá-la.

E, na verdade, não é preciso. A disfunção que tem contribuído para a elevação vegetativa da dívida não está na lei, e sim no contrato. O que mais contribuiu para que a dívida transbordasse o limite fixado pelo Senado - e esse não é um problema apenas de São Paulo, mas de muitos municípios e alguns Estados - foi o impacto do IGP-DI, índice que corrige o débito, sofrido após a desvalorização cambial de 2002. Parte do problema seria resolvida com a substituição do IGP-DI pelo IPCA, índice menos oneroso, a curto prazo. Isso não significaria prejuízo para a União, visto que os dois índices tendem a convergir, a longo prazo.

O ex-procurador-geral da Fazenda Nacional Cid Heráclito de Queiróz, que deu forma jurídica à Lei de Responsabilidade Fiscal, garante que a substituição de índices não vulnera a lei. Ele sugere, ainda, que os créditos dos municípios junto ao Fundo de Compensação de Variações Salariais, considerados líquidos e certos, sejam abatidos do global da dívida ou das prestações - medida já prevista nos contratos, mas que a União não implementa para não afetar os resultados primários do setor público.

O ex-ministro Mailson da Nóbrega, por sua vez, recomenda que o Senado baixe resolução estabelecendo prazos razoáveis para que a trajetória da dívida convirja para os limites fixados, preservando, ao mesmo tempo, os níveis de superávit primário.

As medidas sugeridas não atingem a Lei de Responsabilidade Fiscal, que deve ser preservada a todo custo. E podem permitir que municípios como São Paulo saiam da armadilha representada pela impossibilidade material de equacionar a dívida aos padrões dos contratos e do Senado.